Registrada em 06 de abril de 2009

A ALACIB é uma Associação Literária sem fins econômicos, com sede e foro em Mariana, Minas Gerais, CNPJ 10778442/0001-17. Tem por objetivo a difusão da cultura e o incentivo às Letras e às Artes, de acordo com as normas estabelecidas no seu Regimento. Registrada em 06 de abril de 2009.

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Acadêmica ANA CRISTINA MARTINS
Cadeira nº 09
Classe - Correspondente estrangeira
Lisboa - Portugal


 

Notas Biográficas de Ana Cristina Martins

Professora Doutora Ana Cristina Martins é investigadora do Instituto de Investigação Científica Tropical, na área da História da Ciência, em geral, e da História da Arqueologia, em particular. É Doutora em História, Mestre em Arte, Património e Restauro e Licenciada em História-variante de Arqueologia pela Universidade de Lisboa, em cujo Centro de Arqueologia - Uniarq - dirige o Grupo de Trabalho SHIU: História da Arqueologia em Portugal. Possui várias publicações na área da História da evolução do pensamento arqueológico, museológico e patrimonial, a maioria das quais resultante de comunicações apresentadas em encontros nacionais e internacionais. Lecciona na Universidade Nova de Lisboa; foi professora na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, na qualidade de Professora Auxiliar Convidada, em cuja Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração coordena os Seminários de História do Património e da Ciência. Preside, na actualidade, às Secções de Arqueologia e de Estudos do Património da Sociedade de Geografia de Lisboa. Presidente da Academia de Portuguesa de Ex-Líbris. E-mail: ana.c.martins@zonmail.pt

Ensaio Acadêmico

Incorporalidades patrimoniais


«Conservar é lutar contra o tempo.
Procurar subtrair alguma coisa aos efeitos normais
da destruição, da perda ou do esquecimento.
É também tentar opor-se, tentativa evidentemente
sempre coroada de fracasso,
àquilo que é a própria essência do tempo, o irreversível.
Neste sentido mais lato, a conservação pode aplicar-se
em primeiro lugar aos objectos materiais,
mas também ao saber, à língua, à cultura, à própria vida»(Guillaume, 2003, 45)

Tão ou mais relevante do que o corpóreo, o intangível impõe-nos indagar pensamentos perdidos, ocultados, tolhidos ou murmurados, (re)montando-os quantas vezes graças à lógica e ao raciocínio. Não que seja completa e irremediavelmente inexequível identificá-los, fruí-los e registá-los, neste caso mercê de benfazejas diligências tecnológicas. A natureza, todavia, da intangibilidade encerra-se nela própria, na incapacidade de imprimir, em vários suportes, a letra da sua essência, da sua mensagem, do seu papel. Essa não é a sua missão; esse não é o seu propósito. Longe de laudas e assinaturas de acções rememoráveis em marcas perenes, o ser, o estar e o fazer tipificam bastante mais o todo, do que o individual. (Re)integram-se, (re)produzem-se e perpetuam-se, contudo. Nem sempre, é certo, de forma harmoniosa, mas quase sempre com excelência para a memória colectiva. A ela recorrerem em busca de boreal diário, (re)visitando signos e símbolos coerentes e unificadores de um vulgo a afeiçoar consoante agendamentos cronológica e geograficamente datáveis e localizáveis, em nome desse espaço fictício que é o passado pretendido comum, apesar da multiplicidade de cruzamentos de sortida propriedade.
Vivemos, porque existimos. Existimos porque somos perante nós e sobretudo o “outro”. Somos, porque sentimos. Sentimos, porque, em primeiro lugar, nos sentimos. Sentimos, porque pertencemos. Mas, a quem? Ao quê? De início, a nós próprios; depois, a todos quantos nos talham, a tudo quanto nos afeiçoa. Somos, todavia, o que o(s) outro(s) de nós faz(em), ou o que permitimos que de nós faça(m), consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente. Consumindo informação adaptável a esboços individuados; impermeabilizando o nosso agir de ascendentes indesejáveis, eleva-nos uma sede inalterável de propriedade, de sentido de pertença, a quem for, ao que for, independentemente das razões e dos objectivos, para além do grau de veracidade da sua assumpção. Despidos desse juízo, nada somos, nem perante nós, nem perante o(s) outro(s), esse nosso contínuo espelhar, mesmo que por ele momentaneamente distorcido, donde por nós e por nós absorvido. Mas esta relação não é unidireccional. A imagem de nós detida reflecte um talhe contínuo, extraindo-lhe ou aditando-lhe pormenores, quantas vezes decisivos perante necessidades e almejos específicos. Por isso mesmo, nem sempre a imagem irradiada corresponde na íntegra ao espírito do emitente. Burilando, nuns casos, hiperbolizando, noutros, e desfigurando, em terceiros, rompemos regras, mimetizamos padrões, em nome de um reconhecimento, em nome de um lugar, em nome, enfim, de um substantivo arrancado das trevas. Tudo, por uma glória. Tudo, por uma aceitação. Tudo, para superar a vacuidade das nossas existências face à vastidão e riqueza do que nos rodeia, eleva e obscurece; face, enfim, à nossa finitude e dos nossos interesses pessoais.
Porém, Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba[1]. Para uns, esta frase calou bem fundo no seu desespero, na sua ânsia de dirimir episódios menos felizes das suas vivências, convertendo-os ilusoriamente em não-existências, não apenas físicas como, acima de tudo, memoriais, esses ferros que nos marcam a cada passo, a cada som, a cada odor, a cada palavra, a cada imagem perpassada diante e por entre nós. Este é a esperança dos desesperançados, dos desvalidos da sorte, dos sofredores, dos prevaricadores, dos infelizes. Para outros, no entanto, a acepção contida nestas palavras é receada, ao denunciar, mais do que a fugacidade da nossa existência, a dos nossos actos, a do nosso nome. Por isso, se registam dizeres na esperança vã de iludi-la. Por isso, se fixam em imagem, mesmo em movimento, rostos, estilos e quadros diários. Por isso, se levantam memoriais de formas variadas, ressoando geracionalmente até perecerem. Mas é o que subjaz. É o que permitem que remanesça. Porque, em suma, tudo o que é sólido se dissolve no ar[2]. Mesmo suportes desejados firmes; mesmo vocábulos aguardados como leis inexpugnáveis; mesmo dogmas dissipados, a todo o instante, transitando por entre apreciações, revisões e adaptações a novas ditadas por vontades super estruturais, remetendo ao esquecimento obras que nos poderiam encaminhar de outro modo. Por acção de agentes de alteração e alterabilidade; por intervenção inconsciente ou danosa, criva-se o passado, ferem-se estruturas, tolhem-se lembranças, expiram-se ensaios; cai-se nos braços de Morfeu. Sobretudo pergaminhos mais antigos, quando a rememoração impregnava pedras e manuscritos, tantas vezes forjados ou superlativados, orlando os exactos promotores de gestas entoadas.
Tal como proclamado pela sabedoria popular, parte de nós demanda a eternidade, procriando gerações, reproduzindo-as socialmente, alteando edifícios ou fixando letras, sons e imagens, para alcançar a totalidade da vida. Vida completa ou ilusão completa? Para quê procriar, quando mais não se passará do que de uma leve lembrança? Porque razão se ergue o que seja, se o olvido nos atingirá para sempre? De que serve escrever, compor e arrolar, se não mais recuperarão os seus autores, a não ser episodicamente, numa qualquer evocação em contexto de interesses pessoais ou institucionais? Mas, mesmo assim, como retornar ao indivíduo, ao seu âmago? Como entender os seus feitos, as suas palavras, as suas notas, as suas captações? Difícil será sempre remontá-los…Além disso, para quê? Qual a razão de tanta urgência, de tanto desassossego, de tanto ímpeto, quando tudo se apagará num ápice, tudo se turvará quando o véu da noite eterna se abater sobre nós? Sempre a intentar ignorar o óbvio…
E aqueles, que por obras valerosas, se vão da lei da morte libertando[3]? Por seus actos ou posição na sociedade, nomes transcorrem a noite dos tempos, mesmo quando o seu estar e pensar se sombreiam para sempre neste combate inglório contra o anonimato, sinónimo de olvido, independentemente das motivações e das formas que alcança. Mesmo o apego geracional e obras assinaláveis, tantas vezes embaciadas pela chuva impiedosa, por calores extemporâneos e gelos invernosos. Mas, de igual modo por sentimentos menos nobres de quem, na ânsia de eclipsar os demais, se excede sobre cinzas alheias. Não obstante, alguns transmitem-se incorporeamente através de oralidades poetizadas, dramatizadas, musicadas, para regozijo e evocação colectiva perante a relevância aportada na sua coesão. Outros, segredam-se no fogo familiar, como se de ancoradouros se tratassem, quais demiurgos existenciais, numa necessidade intrínseca de buscar em páginas de antanho sentidos para os seus percursos. Coerência secularmente ecoada, ela perfaz organismos unicelulares cumulativamente pluricelulares, como se de um mesmo corpo se tratasse, da mesma entidade, da mesma linha, da mesma árvore. Árvore de raiz única (= passado comum), que cresce (= cronologia), ramifica (= etnias, culturas e sociedades) e frutifica (= novas gerações) em solo (= localidade, região ou país) renovado em permanência (= progresso científico-tecnológico), até fenecer por esgotamento da sua seiva ou querença externa. Sinónimo de eternidade, a morte permite renascer e transformar nomes e feitos para construção dos mesmos, (re)edificando assim o(s) passado(s), de memórias quantas vezes retalhadas.
Será assim ou apenas as formas divergem? Na verdade, é como se apenas três grandes energias movessem o nosso diário rumo à incerteza, apesar das visões apocalípticas que pairam sobre gentes desprovidas de sentido pessoal e personalizado verdadeiramente orientador dos seus quotidianos. Em concreto, a inerência de aperfeiçoar a sua própria condição; a vaidade humana e as vantagens puramente económicas, quantas vezes concomitantes à soberba, mesmo quando dissimulada. Assinala-se, ademais, um dominador (quase) comum. Quem perscruta sempre, incansável e denodadamente, questiona em permanência a origem de tudo. O que não é fácil. (Con)viver em constância num contexto pleno de signos e de símbolos que remetem para a transcendência, acarretará sequelas íntimas nunca sanadas por inteiro. Num âmbito (ainda) adverso a descrentes num fim traçado superiormente, argumentando tudo e tudo procurando compreender e apreender, debatem-se afincadamente no seu quotidiano com a indiferença, a causticidade e o desapreço de quem, circunscrito a si, menospreza o (quase) total desapego à materialidade, embrenhando-se num universo que principia por ser só dele para ser um dia de todos. Assim o queiram. A inquietude destes (cada vez menos) eremitas da contemporaneidade residirá na (imensa) consciência da volatilidade existencial, fazendo depender os seus dias de uma extinção iminente, sem retorno, para que nada seja em vão, para que nada se transforme em incessantes não-lugares de existências individuais ou colectivas.
Prosseguida em regiões e culturas moderadamente tocadas pelo feroz desenvolvimento tecnológico; patente em oralidades difundidas entre avós e netos, a manutenção e transmissão de práticas, usos e costumes, a par de episódios mais ou menos relevantes, além da sua natureza e escala, cunharam a contemporaneidade ocidental, transformando-a num dos seus principais - senão os mais importantes - elementos distintivos. Não fora a aplicação da ciência e da tecnologia ao despertar industrial sequioso de novos desempenhos, motor primordial de lazeres gradualmente conquistados, o moderno Grand tour não antecederia o movimento turístico, um dos esteios do pós-racionalismo, ancorando sentires e identidades essenciais a recentes agendamentos políticos. Redireccionou-se, de ora em diante, o futuro a partir dessas estátuas por nós esculpidas, que são os passados recuperados, como se de estratigrafias se tratassem, quais arqueólogos em demanda de fragmentos ínfimos de cenas ancestrais para deles retirar testemunhos passíveis de as recompor parcelarmente, imprimindo uma sorte de esquizofrenia grupal vincada por angústias despertadas pela sombra do esquecimento nutrido por antigos desagravos e renovadas entidades. Tal como a geologia, a arqueologia e a psicanálise, o património cultural instituiu uma prática de anamnese quase diária, recolhendo à superfície e, sobretudo, em camadas profundas dos nossos caminhos da(s) memória(s), individual(is) e colectiva(s), excertos de um pretérito recuperável consoante os momentos vividos, as datas comemoradas, os nomes avocados. Por outras palavras, é a memória que consente a perenidade.
Mais do que um puro exercício de regresso ao passado em nós mesmos e nos termos em que nos movimentamos, o património cultural legitimou e consolidou programas políticos de pequena e grande escala, alicerçando uma indústria basilar da actualidade: a turística, sustentadora incontestável da perpetuidade patrimonial.
Mas, esta constitui uma problemática específica sobre a qual nos debruçaremos num próximo ensaio.
Lisboa, Outono de 2013
A Acadêmica

[1] Padre António Vieira, Sermão do Mandato. 1643.
[2] Marshall Berman, Tudo o Que é Sólido se Dissolve no Ar. Lisboa: Edições 70, 1989.
[3] Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas, Canto I, c. 1556.



Edição em 06 de fevereiro de 2019 por J. B. Donadon-Leal