Registrada
em 06 de abril de 2009
A
ALACIB é uma Associação Literária
sem fins econômicos, com sede e foro em Mariana, Minas Gerais,
CNPJ 10778442/0001-17. Tem por objetivo a difusão da cultura
e o incentivo às Letras e às Artes, de acordo com
as normas estabelecidas no seu Regimento. Registrada em 06 de abril
de 2009.
Diretoria
da Academia de Letras, Artes e Ciências Brasil
Presidente:
Andreia Aparecida Silva Donadon Leal
Vice-Presidente: J.S. Ferreira
Secretário-Geral: Gabriel Bicalho
Tesoureiro: J. B. Donadon-Leal
Promotora de Eventos Culturais: Hebe Maria Rôla Santos
Conselho Fiscal e Cultural: José Luiz Foureaux de Souza Júnior,
Magna das Graças Campos e Anício Chaves
Acadêmico
J. B. DONADON-LEAL
Cadeira Nº 02
Patrono: Camilo Francisco Leal
Notas
Biográficas de J. B. Donadon-Leal
José Benedito Donadon-Leal. Presidente do
Conselho Editorial do Jornal Aldrava Cultural. Poeta, ensaísta.
Doutor em Semiótica e Linguística pela USP, Pós-Doutor
em Análise do Discurso pela UFMG e Professor de Semiótica
da UFOP. Professor Emérito da UFOP. Membro da Academia de
Letras, Artes e Ciências Brasil. Membro da AMULMIG. Membro
Honorário da Academia Maceioense de Letras. Membro Honorário
da Academia de Letras e Artes do Estoril. Membro Honorário
da Academia Internacional de Heráldica - Portugal. Membro
Honorário do Instituto de Estudos Histórico-Militares
Napoleão I - Portugal. Membro Honorário da Divine
Académie des Arts Lettres et Culture - Paris. Medalha de
Ouro da Académie du Mérite et Devouemente Français.
Autor de Dô-caminho (1992), Marília - sonetos desmedidos
(1996), Jardim & Avenida (1997), Gênese da poesia e da
vida (1997), Sáfaro (1999), Aldravismo - a literatura do
sujeito (2002), Leituras - ciência e arte na linguagem (2002),
brejinho - senda 04 de nas sendas de Bashô (2005). Reflexões:
a linguística na sala de aula (Org.) 2007. Relatos de Experiência
- a linguística no ensino da língua portuguesa (2008).
Vereda dos Seixos (2008). Ventre II - bater aldravas. In: Ventre
de Minas (2009). Publicou nos livros Lumens, Mariana (2011) e Écrivains
contemporains du Minas Gerais. Paris (2011). Óbvias liberdades
- poesia infanto-juvenil (2012). O Livro das Aldravias (Org.) (2012).
O Livro II das Aldravias (2013). O Livro III das Aldravias (2014).
O Livro IV das Aldravias (2015). João-sem-braço (contos
- 2015) O Livro V das Aldravias (2016). O Livro VI das Aldravias
(2017). O Livro VII das Aldravias (2018). Aldravismo: a reivenção
da Arte pelo Jornalismo Cultural (2018). Prefacista de dezenas de
livros. Autor de dezenas de artigos e ensaios publicados em revistas
científicas.
Discurso
de Posse
Cadeira N° 02: J. B. Donadon-Leal
Patrono: Camilo Francisco Leal
A arte integral de Camilo Leal
Camilo Francisco Leal (1922-2004), Patrono da Cadeira de número
02 da ALACIB, artista plástico, escultor, compositor, contista
e poeta, nasceu em Bica da Pedra, SP. Foi um dos pioneiros do Norte
do Paraná, que em 1952 trabalhou na fundação
e administração da Fazenda Rio da Prata em São
João do Caiuá. Em 1963 mudou-se para Maringá,
onde viveu até seu falecimento.
Camilo deixou uma obra vasta – 04 livros de contos e poesia,
137 músicas, 10 esculturas em papel e centenas de pinturas,
entre óleo, acrílico e desenhos a lápis e esferográfica.
A obra completa de Camilo, tematizada em torno da história
da vida do negro liberto, mas sem perspectivas, e da vida rural,
está sendo catalogada e organizada para publicação.
O Homem Camilo Leal
Meus olhos de filho talvez sejam impróprios para ver a obra
de Camilo com algum rigor analítico. Mas, quem exigirá
de mim rigor analítico? Deixarei minha paixão guiar
minhas palavras de avaliação de uma obra que vi nascer
e se fazer agigantada a cada dia.
Eu, menino, via ao anoitecer, após dia de trabalho, Camilo
tomar formão e madeira e ir esculpindo espelho de braço
de violino, voluta, cravelhas, corpo de tampo com rasgos (ouvidos)
em curva delgada, cavalete e estandarte. Depois, com uma vareta
de goiabeira e crina de cavalo, montou um arco. Pronto, descobrimos
atônitos (os filhos) que Camilo tocava violino, além
de cavaquinho, este que já fazia parte de nossa rotina crepuscular.
Mais tarde Camilo luthier fabricou um cavaquinho, um violão
e uma guitarra.
Na adolescência, nas fazendas da região de Marília,
estado de São Paulo, Camilo fez parte de um grupo musical
com os irmãos – tocava violão, cavaquinho e
rabeca. Embora minha memória
de menino não tenha gravado com precisão os relatos
do pai quanto à sua atuação como membro de
um grupo musical, a desenvoltura com que ele afinava e tocava instrumentos
de corda comprova que ele tinha intimidade com aqueles instrumentos.
Em 1952 Camilo veio para São João do Caiuá,
Paraná para administrar a derrubada do mato e a plantação
de café na Fazenda Rio da Prata. A atividade de administrador
o fez perspicaz empreendedor, levando-o a ser dono dos seus destinos
após o ano de 1963, quando a grande queimada destruiu os
cafezais norte-paranaenses. Em Maringá, numa casinha de madeira
de 36 metros quadrados, com quatro cômodos em chão
batido e fogão à lenha, abrigava seus 08 filhos e
no quintal fabricava colchões de capim, de que tirava o sustento
da família – Rua Lima, 571, Vila Morangueira; loteamento
bem traçado, com ruas e passeios largos entre o que fora
uma fazenda de café.
Nesse lugar, uma data de 14 metros de frente por 40 metros de fundo,
havia além da casa, um poço de água cristalina,
parreira, mangueira, abacateiro, bananeira, horta e galinheiro.
Bem no fundo do quintal, a latrina. Os filhos de Camilo cresciam
com as árvores frutíferas do quintal, enquanto ajudavam-no
na tarefa de fazer colchões de capim. A data vizinha, à
esquerda, era vaga; era nosso campinho de futebol. Tínhamos
a cor da terra roxa nos fins de tarde.
Nas tardes dos sábados, a meninada toda da vila fazia fila
para que Camilo cortasse cabelo. A máquina zero só
deixava topete na fronte, e todos carecas de topete batiam bola
no campinho.
Em caso de doença, acudiam todos da vila aos cuidados de
Camilo, que aplicava injeção depois de ferver a seringa
com as agulhas em um estojo de lata. Quando algum menino vinha com
hematomas de pancada ou queda, era sua mulher, a italiana Sílvia
Donadon quem fazia a benza: punha um copo emborcado sobre um pires
com água, uma cruzinha de madeira de fósforo sobre
o fundo do copo, um sinal da cruz com o dedo indicador da mão
direita sobre
o hematoma. Menino dispensado para a brincadeira, enquanto a água
do pires entra no copo; pires seco, hematoma curado.
(In: LEAL, Camilo. Escravos do Troncão – contos de
senzala. Ed. Lázaro F. Silva, 1996)
Em casos complicados de bronquite, Camilo preparava garrafada de
mel, poejo e alguma coisa que não revelava; ou açúcar
cristal cozida no interior de mamão-de-corda verde. Para
os mais desesperados, preparava simpatia de cuspe dos familiares
em casca de ovo, às 15 horas da sexta-feira santa, que pendurada
sobre a fumaça do fogão permanecia até a meia
noite da aleluia, quando o doente o retirava e o jogava para queimar
na brasa junto com sua doença.
Contador de histórias, Camilo reunia a molecada da vila em
noites claras de lua e contava dos casos em que topou com onça
quando derrubava mato na fazenda Rio da Prata. Ele e o compadre
Lourenço abriam picada para demarcar as fronteira da fazenda,
quando deram de cara com a onça. O susto foi tão grande
que o tiro da cartucheira derrubou a copa de uma árvore,
e a onça fugiu para o lado do Paranapanema. Tinha orgulho
em dizer que não havia matado nem onça nem jaguatirica,
embora tivesse arrancado a casa dos bichos do mato para plantar
café.
Na aritmética gabava-se de ser mais rápido na contabilidade
que alguém com máquina de calcular Facit.
Com os filhos criados, deixou de fabricar colchões e se dedicou
às artes: poesia, música, pintura e escultura.
O Poeta Camilo Leal
O poeta Camilo Leal é retrato da espontaneidade discursiva,
deixando escorrer nas palavras a poesia que reside na alma. Com
formação escolar apenas primária, Camilo viaja
na escrita como quem fala, deixando fluir sua sintaxe cotidiana,
sem as amarras da gramática formal.
A poesia do século XX resgatou a liberdade estética
que a institui e a constitui. Trata-se da função poética
descrita por Jackobson (1896 – 1982), linguista russo que
percebeu na poesia a predominância das estruturas paradigmáticas
e sintagmáticas, isto é, todos os vocábulos
compõem um todo que instiga a percepção de
sentidos na interdependência de som e sentido e da métrica
e gramática. A função poética, que não
é exclusividade da poesia, permite ao leitor a percepção
de algo a mais do que uma simples informação, dado
que os efeitos de jogos sonoros, aliterações, de ritmo
diferenciado do da fala ordinária pela métrica e pela
versificação conduzem a ampliação compulsória
dos sentidos do texto.
Nessa perspectiva, Camilo apresenta uma poesia propositiva, para
além da metáfora como figura, deixando entrever, usando
a palavra como signo indicial e não como signo preso a um
dicionário. Sua particularidade de construção
indicativa encontra eco na proposta aldravista de literatura, em
que a metonímia se põe como figura central.
A narrativa poética de Camilo Leal conduz o leitor ao mundo
histórico escrito pela lembrança de relatos orais
da avó, de um período escravagista cruel que marcou
a memória infantil do pequeno Camilo, como no poema gira-mundo,
para o qual Camilo também compôs música:
Gira-mundo lê-lê
Gira-mundo lá-lá
Gira-mundo está senzalá
Senzalá o-lê-lê
Senzalá
Tiraram minha tanga e o tangô
Ataram-me as mãos como um ladrão
Botaram o gira-mundo pra girá, ô,ô
Crueldade sem amor
(In: manuscritos inéditos)
A temática do negro cativo marca grande parte da obra inédita
da poesia de Camilo, sob guarda da família a espera de estudo
e publicação. Em versos autobiográficos, Camilo
expõe com uma simplicidade extasiante a sua formação
escolar. O estribilho reitera sua condição de não
diplomado no final do século XX, época em que a formação
escolar atestada passou a ser exigência para a ascensão
social. O menino da década de trinta percebeu que não
concluiria os estudos, mas talvez não tenha dado conta de
que isso faria falta tempos depois. O poema versos autobiográficos
não é um mero relato, é um poema, pois a versificação
quebra a construção sequenciada de uma narrativa comum,
uma vez que faz saltos inusitados na construção paratática,
que pela versificação joga com temas relacionados,
mas não sintaticamente subordinados.
Versos autobiográficos
Aprendi
lê malemá
Aprendi malemá lê.
Meu professor não usava cadeira,
Sentava-se no canto da mesa.
Aos vinte dias de aula
Mandou-me escrever na lousa:
O boi baba
Eu não conseguia escrever boi,
Só escrevia bi,
A molecada ria...
Minha mão esquerda
Apanhou tanto daquele bolo!
E a mão direita encheu
A lousa de bi.
Aprendi lê malemá
Aprendi malemá lê.
Eu pensava que estava
Escrevendo boi;
Só escrevia bi.
Passados poucos dias
Chegaram quatro moços
Em uma máquina pé-de-bode,
Com uma intimação escrita,
Professor, com urgência,
Seguir para a revolução.
Isso foi na década de trinta,
Num sangrento combate
Na montanha
Um mineiro deu-lhe uma pedrada:
Acabou-se o professor;
Uma morte trágica, estranha.
Aprendi lê malemá
Aprendi malemá lê.
O prosador Camilo Leal
O prosador Camilo Leal é mais que um contador de histórias.
Embora o faça com destreza, a contação de histórias
é apenas uma das habilidades na heterogeneidade de gêneros
desse escritor.
Em Escravos do Troncão (1996), publicado por Lázaro
Francisco da Silva, Camilo é a voz da avó nas rememorações
da crueldade escravista nas fazendas do interior de São Paulo.
O livro retrata especialmente o trabalho feminino, o papel da mulher
escrava num mundo em que os homens, cativos e livres, eram escravos
de um sistema comandado pela força bruta. São contos
poeticamente construídos, em que as narrativas tornam os
eventos vivos e enunciam a sucessão de acontecimentos de
forma teatral.
Mas, a prosa de Camilo é também conceitual, fazendo
de seus contos uma reflexão a respeito de temas relevantes
no final do século XX. Camilo chorou a morte das cataratas
das Sete Quedas, no rio Paraná, quando do enchimento da represa
de Itaipu. O Rio Tietê e o Paraná são rios que
fizeram parte da vida de Camilo, numa relação direta
com sua trajetória de vida; nascido e crescido às
margens do Tietê veio a construir sua família às
margens do Paraná.
Cobrar respeito aos rios é cobrar respeito à vida.
O conto Dois Rios relata conceituando sua trajetória de vida
pela vida dos rios Tietê e Paraná.
O mundo fluvial é igual os outros mundos, fruto da natureza,
situados nos seus devidos lugares. Alimentando e criando uma infinidade
de seres. Sempre um verdadeiro rodízio com suas águas.
Respeitando os demais mundos que o cercam. E gostaria de ser respeitado.
É sobre esse assunto que o rio Paraná conversa com
o rio Tietê. (In: Dois Rios, manuscrito inédito)
Em currutela de casos Camilo em um conto longo narra sua saga como
pioneiro no norte do Paraná. Trata-se de um relatório
literário do que foi colonizar uma região de matas
densas e transformá-la numa das mais promissoras regiões
do país.
Vinte e um de setembro de um mil, novecentos e cinqüenta e
dois. O brinco da lua nova beijando o chão. Na boquinha da
noite, o horizonte amarelado pelos últimos raios de sol daquele
dia. Para mim, surpresa. A poeira avermelhada, misturada com a cinza
das queimadas sobrevoam as copas verdes da imensa floresta, que
toma quase a metade do Estado do Paraná. Desculpe-me a pessoa
leitora. Não tenho como explicar uma maravilha dessa grandeza
com todos os detalhes. O que poderá esclarecer melhor seria
tinta, tela, pincel. Claro, e um bom pintor de paisagem. Não
é fácil relatar uma obra que antes quem viu foi só
o céu. Vendaval forte e o avião da Vasp mergulhado
no meio com trinta passageiros, procurando oportunidade para aterrissagem.
Dava para se notar o
medo, o pavor na cara das pessoas. Mas, tudo isso era superado no
momento, olhando para baixo e observando a cidade de Maringá,
ainda bebê, que nasce em berço de ouro. (In: Currutela
de casos, manuscrito inédito)
Edição
em 28 de janeiro de 2019 por J. B. Donadon-Leal