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Jornal
Aldrava Cultural |
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Artigos
- O espetáculo da vida |
Publicado
no Jornal Aldrava Cultural, Nº 60, pág. 03
O
espetáculo da vida – a semiótica complexa Antonio
Gualda.
J. B. Donadon-Leal
Em
1994, quando fiz um curso de semiótica lingüística
com o professor Cidmar Teodoro Pais, na Universidade de São Paulo,
fiquei intrigado com um dos exemplos mais sensacionais de semiótica
com que já tinha me deparado – o espetáculo da vida.
Embora magnífico, imaginei jamais poder analisar uma semiótica
dessa natureza, dada a sua grandeza. Tinha, até então, o
costume de operar com a análise de objetos pequenos, tais como
as semióticas verbais (orais e escritas), semióticas não
verbais (música, pintura, escultura e mímica), e semióticas
complexas (teatro e cinema), mas não conseguia imaginar uma análise
de um espetáculo tão complexo quanto a vida. Lancei-me a
analisar uma biografia como se essa fosse uma semiótica complexa,
mas a narrativa biográfica nada mais é do que um gênero
da semiótica verbal escrita. As vidas retratadas no cinema poderiam
representar esse espetáculo, mas aquela vida na tela já
é uma vida adulterada pela visão restritiva no escritor,
do roteirista, do diretor, dos atores. O espetáculo da vida, essa
semiótica que me desafiava desde aquela época, só
pode ser analisado in loco, in praesentia, jamais na absentia, jamais
através do olhar filtrado por uma outra narrativa que não
a da própria existência pragmática e em processo de
uma vida em construção que se dá como objeto de análise
ao longo da própria existência. Uma vida de 30 anos só
poderia ser analisada em 30 anos.
O mais próximo que cheguei de um espetáculo dessa natureza
foi o acervo literário dos poetas árcades de Minas Gerais
(Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silva
Alvarenga e Alvarenga Peixoto, todos do Séc. XVIII), conjunto de
documentos com os quais trabalho em minhas atividades de pesquisa em Análise
do Discurso e Semiótica, que relata uma trajetória de vida
complexa e disponível ao percurso da análise. Mas, tinha
em mãos apenas um conjunto de documentos que não representava
uma vida inteira. Eis que o destino me apresenta a obra poética,
musical e pictórica de Antonio Gualda. Este, mais que um artista,
faz-se um promotor de arte, um mecenas, um incentivador de novas vidas
artísticas. Uma vida dedicada à arte é um espetáculo.
Claro que não é possível analisar esse espetáculo
em sua completude, especialmente porque este analista só o vê
em sua versão digital e numa distância continental, entremeada
pelo oceano Atlântico. Mas a porção visível
desse espetáculo salta aos olhos e aos ouvidos, numa amostragem
capaz de fazer instaurar a grandeza, no sentido matemático do termo,
que é esse signo extremamente produtivo de significações
novas a cada vez que é enunciado em uma de suas aparições
artísticas.
Por si só, um homem é um ser completo, embora em aparições
fragmentadas da vida. Mais completo é o homem que produz arte,
pois nenhuma outra atuação humana é mais espetacular
que a arte. Se não é possível analisar uma vida inteira,
uma vida artística parece poder se tornar um objeto analisável.
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Golden
slumbers, miles away |
Prudente
começar pela pintura, essa voz plástica que fala sem enunciar
palavras. As artes plásticas são reveladoras de momentos
da vida que se deixam fotografar pela visão criadora do artista.
Uma pintura não é apenas um retrato morto, mas uma narrativa
viva de um momento vivido, especialmente quando o artista tem consciência
do papel social que ele desempenha. Uma coleção de artes
plásticas pode representar não apenas um instante, uma vez
que revela uma vida inteira. Para que buscar uma biografia de alguém,
para que voltar os olhos para as palavras dos outros sobre o artista se
é possível olhar para o próprio artista através
de sua arte? Antonio Gualda revela em “los sueños blanquinegros”
(coleção de 1987) surreal narração de sua
própria vida, e das pessoas à sua volta, através
de imagens refletidas de uma memória que se deixou resgatar como
relâmpagos que constelam imagens na escuridão do passado
longínquo e intocável. O passado era intocado até
que o sonho artístico retrate-se na aspiração, no
desejo de alguma coisa, no sonho como meta a ser realizada. Imagens negras
destacadas da luz mostram representações de discursos constitutivos
da vida – os círculos familiares, de amizade e profissionais,
os desejos profissionais, os desejos da paixão, os impulsos da
arte, a seriedade da vida e a sua comicidade. Eventos da vida cotidiana
reaparecem, como se o reaparecimento dos acontecimentos fossem os próprios
acontecimentos revividos. Os sonhos de outrora são os sonhos deste
momento em que a luz ilumina algo branco no fundo preto ou uma sombra
negra de algo que estava perdido na memória ante a projeção
branca da luz. Para que as cores, se a luz branca projetada no prisma
de Newton inventa as cores que se reprojetadas no prisma voltam ao branco?
Basta a iluminação. Vida é iluminação.
Arte é iluminação. Arte é vida. E vida com
arte é espetáculo de luzes, de cujas sensações
nascem as percepções mais refinadas das coisas do mundo.
O retrato perdido na gaveta pode voltar a ser a narrativa de que o tempo
presente precisa, para produzir novos projetos para o futuro e, assim,
garantir projeções de felicidade. Pinturas são poemas
sintéticos.
Quando, enfim, as cores vêm projetadas, as pessoas continuam a definir
o centro das atenções do pintor. As cores de “el éter
caliente” (coleção de 1989), com a predominância
do vermelho e seu calor perturbador, seja ele provocado pela explosão
da bomba de Hiroshima, seja na procissão após os funerais;
seja nos diálogos, seja na solidão reflexiva. Que faz o
artista senão projetar-se na arte de sofrer com os que sofrem,
de alegrar-se com as alegrias do mundo, de trocar idéias com as
idéias dos universos discursivos em processamento nas rodas de
pessoas! Será a evolução humana não uma imposição
da natureza, mas uma resultante das trocas de experiências das pessoas
que se lançam na tarefa cotidiana de discutir as ações
realizadas e as projetadas?
Que dizer das emoções e das paixões? Deixar a alma
sair da materialidade do corpo, para materializar-se na pintura é
a porção divina do homem que se manifesta em seu mais nobre
sentimento – a arte. Diante do horror da guerra ou da euforia do
amor aos Beatles, o artista se deixa tomado pelas emoções
e pelas paixões. Nada mais nobre que o verdadeiro sentimento humano
de reação sincera diante das ações humanas
– más ou boas. A reação do artista é
a de dizer aos homens que as boas ações devem ser reiteradas
e reeditadas, enquanto as más devem ser tomadas como exemplo, para
não serem repetidas.
Ser artista já seria o bastante para a realização
de um homem. Para outros homens, não para Antonio Gualda. Este
não cabe em si e também precisa da música para extravasar
toda sua emoção e paixão pela vida. Não bastam
os diálogos entre instrumentos na composição musical,
pois a melodia deve dialogar também com os bairros de Granada,
com as pessoas de sua terra, com a sua pintura. Se havia fronteiras entre
uma manifestação artística e outra, em sua obra não
há mais. Música e artes plásticas se encontram em
harmonia, cada uma ao seu modo conspirando contra as asperezas da vida
e proporcionando o encontro dos sonhos.
Os ruídos terrenos que atemorizam e encorajam ao mesmo tempo não
se contentam com os acordes musicais, necessitam desesperadamente de palavras,
e estas vêm em forma de poesia, num trânsito não solicitado,
mas que se apresenta como obrigatório na vida que já se
desenha espetacular para Antônio Gualda. A arte não é
vã ostentação, nem quando o amigo precisa ser sacudido
de sua inércia para que queira também aprender outras línguas,
inteirar-se das novidades e encontrar, como Gualda, as novidades que passam
diante dos olhos. A arte não se faz mais como uma profissão,
de cujo esforço se ganha o sustento diário. A arte faz parte
do espetáculo da vida, das ações mais banais e corriqueiras,
nas expressões diárias e nas relações com
as pessoas. Assim, fazer arte se torna parte tão intensa da vida
que o artista precisa ver a arte que emana dos outros. Além de
artista, Gualda se torna mecenas, produtor de arte, mestre na arte de
dar exemplo de incentivo aos que se iniciam nas veredas artísticas.
Sua vida não é mais sucessão de dias, é espetáculo.
Sua arte não é apenas conjunto de obras avulsas, mas união
de expectativas, emoções e paixões, ingredientes
compulsórios de vidas espetaculares. Claro que é impossível,
dados os limites da atividade humana, pretender analisar um espetáculo
dessa natureza. Claro que a semiótica complexa exemplificada pela
metáfora do espetáculo da vida jamais será alcançada,
mas é bom encontrar exemplos de vida que sejam espetaculares pela
grandeza que representa para o enriquecimento da cultura, especialmente
quando traduzida pela produção artística de valor
para além dos limites das teorias e dos métodos de análise.
Cabe aqui uma lamentação: pena que o Brasil demore tanto
a perceber a existência de valores culturais tão espetaculares
para além da esfera da produção pop altamente midiática.
Quem sabe minha insistência em bater aldravas, tocar campainhas
nas portas de todas as artes venha trazer a este país tropical,
de olhos voltados somente para as artes populares, o espetáculo
representativo da beleza que é Antonio Gualda, em Granada, na Espanha,
na Europa e em todas as esferas culturais que sabem apreciar a arte em
sua completude.
Antonio Gualda, com a vida dedicada à arte, transformada num espetáculo,
numa semiótica complexa de pintura, música, poesia e promoções
de arte e de artistas é um grande exemplo de como a expressão
das emoções e das paixões pode ser linguagem universal,
a ser falada por um instrumento ou por muitas orquestras reunidas; pela
imagem da luz nas suas expressões máximas em colorir ou
não um espectro de significações; pela disposição
(no sentido ambíguo de vontade) de palavras em versos, para garantir
as perenes semioses constitutivas da evolução – a
arte da inovação fazendo sempre novo e inusitado cada instante
que aparece nesse presente espetacular que é a vida dedicada à
arte.
Dua
telas de Antonio Gualda
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