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Jornal
Aldrava Cultural - ISSN: 1519-9665 |
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Artigos |
ARTIGO
Vastos caminhos da memória de leitura: ontem e hoje
Extensive
reading along memory lane: past and present
Palavras-chave: Leitura. Literatura. Memória.
Andreia Aparecida
Silva Donadon Leal
Mestranda em Literatura, Cultura e Sociedade na UFV
Resumo:
Este texto tem como objetivo refletir sobre os caminhos da memória
da leitura, que acompanham os estudiosos da literatura e da leitura
e justificar a importância de explorar a memória das
leituras empreendidas individualmente. Através das proposições
de Ítalo Calvino, Chiara e Bloom, o exercício reflexivo
com a memória de leitura propicia ao indivíduo conhecimento
de si mesmo, de sua história como ser individual e social,
especialmente do estudioso da literatura e da leitura, como armazém
de subsídios para que suas interpretações de
obras e vidas literárias possam fluir para além do
senso comum.
Abstract:
This text aims to reflect on the ways of reading from memory, accompanying
students of literature and reading and to justify the importance
of exploiting the memory of the readings taken individually. Through
the propositions by Italo Calvino, Chiara and Bloom, reflexive exercise
with the read-only memory provides the individual knowledge of itself,
its history as an individual and social, especially the student
of literature and reading, such as subsidies for warehouse that
their interpretations of literary works and lives to flow beyond
common sense.
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Introdução
Qual
a importância de percorrer, trilhar e explorar os vastos caminhos
da memória de leitura? Possíveis respostas podem ser exploradas
em novas questões. Para avaliar percursos e ganhos? Para conferir
valores ou estabelecer julgamentos? Para apontar predileções
por certos tipos de textos, ou gêneros textuais, sem se preocupar
com os livros recomendados ou os considerados “politicamente corretos”
pela Academia? Para traçar ou apontar quais leituras foram profícuas
e significativas em distintas épocas da vida e que ficaram registradas
e marcadas no registro da memória? Ou ainda, para traçar
perfil?
O objetivo deste artigo é o de refletir sobre essas questões
que acompanham os estudiosos da literatura e da leitura, no sentido de
encontrar respostas que justifiquem tanto investimento em leitura.
Os percursos de leitura dos estudiosos de literatura e de leitura fazem
sentido e justificam, inclusive, suas formações. Chiara
(1993) diz que percorrer os campos e vastos palácios da memória
é:
[...]
uma silenciosa aventura do espírito a se defrontar com tesouros
guardados com generosa meticulosidade. A um movimento da alma, esta ou
aquela imagem se oferece à consciência e, apesar de ter ficado
lá por tanto tempo oculta, agora ressurge com inusitado frescor
e novidade: a memória dos sentidos (da visão, do olfato,
da audição e do tato), a memória das ciências,
do que ao longo da vida se aprende a memória das artes e a memória
dos afetos. (CHIARA, 1993, p. 68).
Dessa
forma, poderíamos dizer que a importância de explorar a memória
das leituras empreendidas individualmente é a de reconhecer, eleger,
apontar e recordar nossos tesouros, nossas “obras” e clássicos,
que ficaram retidos e guardados. Citar, sem subterfúgios, “nossa
memória de leitura” é mergulhar dentro de nós
mesmos para abrir “arquivos”, rememorar estórias ou
obras que marcaram nossa vida. A memória confere identidade ao
ser humano, pois permite raciocinar, formar opiniões críticas,
chegar a avaliações, estabelecer julgamentos, pensar e selecionar
temas, evidenciando a nossa autonomia.
O exercício reflexivo com a memória de leitura propicia
ao indivíduo conhecimento de si mesmo, de sua história como
ser individual e social. Mostra ainda, os livros que se tornaram nossos
clássicos, nossa biblioteca eleita, tesouro inestimável
e talismã para vida; pois segundo Chiara:
[...]
sem nostalgias paralisantes, a memória produtiva acena com um futuro
claro e profícuo, porque a partir do reconhecimento do que fomos
e somos é que podemos preparar de forma proveitosa nosso dia de
amanhã. (CHIARA, 1993, p. 71)
A
leitura destacada na juventude, conforme diz Ítalo Calvino (1993),
é formativa e representa crescimento como qualquer outra experiência,
pois:
[...]
de fato, as leituras da juventude podem ser pouco profícuas pela
impaciência, distração, inexperiência das instruções
para o uso, inexperiência da vida. Podem ser (talvez ao mesmo tempo)
formativas no sentido de que dão uma forma às experiências
futuras, fornecendo modelos, recipientes, termos de comparação,
esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas
de beleza; todas, coisas que continuam a valer mesmo que nos recordemos
pouco ou nada do livro da juventude. (CALVINO, 1993, p. 10)
Muitos
jovens elegem seus livros de cabeceira, os que contêm estórias
com romances açucarados e final feliz. Essas estórias são
encontradas também em bancas de revistas, como por exemplo, as
conhecidas “Júlia, Sabrina, Bianca”, ou os best-sellers.
Essa leitura talvez seja uma das mais apreciadas e procuradas por alguns
adolescentes, pois fala de seu mundo, enxertado de paixões pungentes
e passageiras, sentimentos à flor da pele, primeiras descobertas
sexuais e procura incessante por experiências, que servirão
de modelo à sua vida.
Ler sem motivo aparente nos leva a um dos grandes prazeres e “poderes”
da solidão. Ler por dever de profissão também, quando
empreendido em área que represente nosso lócus do desejo,
nos leva também ao prazer. Para Bloom (2003), ler por iniciativa
própria é desenvolver a capacidade de formar opiniões
críticas e chegar a avaliações pessoais, seja por
divertimento ou por objetivo específico. Para ele:
[...]
ler é um dos grandes prazeres da solidão. O mais benéfico
dos prazeres […], ao menos segundo sua experiência. Ler nos
conduz à alteridade, seja à nossa própria ou à
de nossos amigos, presentes ou futuros. Literatura de ficção
é alteridade e, portanto, alivia a solidão. Lemos não
apenas porque, na vida real, jamais conheceremos tantas pessoas como através
da leitura, mas também, porque amizades são frágeis,
propensas a diminuir em número, a desaparecer, a sucumbir em decorrência
da distância, do tempo, das divergências, dos desafetos da
vida familiar e amorosa. (Bloom, 2001, p. 15)
O
livro é amigo mais autêntico, inseparável e enriquecedor
para todos os momentos da vida. Talvez, a mais profícua solidão
de todos os tempos seja a companhia de um livro. Chiara retrata em sua
leitura solitária a singularidade, o prazer e a magia de estar
só com o livro:
[...]
enfim, por um ou outro motivo, cedo descobri que a melhor solidão
é a companhia de um livro. A leitura sempre teve para mim esse
caráter de recolhimento na intimidade. Por isso talvez confunda
minha história pessoal com as estórias que lia: o que aprendi,
aprendi nos livros ou na vida? Incorporei o que li, aprendi, isso basta.
(CHIARA, 1993, p. 73)
Ler para o estudioso da literatura é vício,
paixão avassaladora, prazer dos prazeres, pois é alimento
eficiente e duradouro para a mente, para o enriquecimento intelectual;
enfim, para a vida.
Ler poesia, por exemplo, não é exercício fácil
para muitos leitores. A adesão do público à poesia
é necessariamente menor do que à prosa. A poesia pede mais
empenho e atenção do sujeito leitor, pois além de
trazer linguagem altamente plástica, requer análises internas
e externas de seus versos às vezes, impregnados de metáforas
e de metonímias.
Manuel Bandeira definiu o poeta como um sujeito que
sabe desentranhar a poesia que há escondida nas coisas, nas palavras,
nos gritos, nos sonhos. Para Bandeira, há poesia em tudo, pois
“a poesia é o éter em que tudo mergulha e que tudo
penetra”. (BANDEIRA, 2003, p.150).
Harold Bloom enfatiza o prazer da memorização
de versos como grande contribuição à leitura da poesia,
porque o poema gravado pela memória passa a possuir o leitor que
lê minuciosamente, “conforme o exige e faz recompensar a grande
poesia”. (BLOOM, 2011, p. 134). Segundo Bloom, a “grande poesia
perpetra em nós um grau de violência que a ficção
em prosa raramente consegue (ou mesmo tenta) realizar (BLOOM, 2011, p.135).
Por exemplo, o haicai, poesia de origem japonesa, que chegou ao Brasil
no início do século 20 e hoje conta com adeptos e estudiosos,
é poema sintético que apresenta breve instante percebido
pelo autor, transmitindo em apenas três versos, leveza, rapidez,
luminosidade, fotografias de instantes poéticos que nascem da contemplação
e observação arguta do poeta.
O haicai requer do leitor concepção de
mundo inteiriça e amadurecida, para compreender e sentir o milagre
de colocar o máximo de poesia em um mínimo de palavras,
ou o oceano em uma gota d’água.
O haicai de J.B.Donadon-Leal transmite plasticidade fotográfica
da saudade, ao evocar a imagem da mãe falecida, em águas
abundantes como um rio, ponto máximo de sua saudade.
Eu
a visse agora
véu sobre os cabelos brancos
choraria um rio.
(DONADON-LEAL, 1992)
O
estudioso de poesia contemporânea pode experimentá-la como
quem deseja romper os limites da significação e do sentido,
como propõem os poetas mineiros do movimento aldravista. Ler a
poesia desse movimento significa participar da criação de
uma nova história, trajetória, com filiações
estéticas e filosóficas. Leitura de produtos literários
novos, essencialmente prazerosos, mesclar-se-á a leituras de ofício
de estudioso da literatura.
O movimento aldravista iniciou-se na cidade mineira
de Mariana em novembro de 2000, com lançamento do Jornal Aldrava
Cultural e do livro Aldravismo – a literatura do sujeito, num momento
em que se verificou o amadurecimento de panfletos literários, como
o PoeZine (1995) e Quatro ou + poetas (1996) e do Jornal Cimalha (1997),
todos representantes da imaginação criadora dos poetas mineiros
aldravistas.
Em sua concepção dicionarizada, Aldravismo vem de aldrava,
termo que designa o utensílio com o qual se bate nas portas para
que estas sejam abertas. Trata-se de uma forma de criação
e de divulgação de cultura (literatura e artes visuais)
em que o foco principal é o sujeito. O estilo trabalha com a conceituação
da arte metonímica, em que o sujeito [autor e leitor] é
livre e heterogêneo para perceber porções daquilo
que é possível, ou seja, o artista não compõe
sua obra sozinho, determinando a sua interpretação; sabe
que o leitor é livre para buscar sentidos. (LEAL, 2009, p. 232)
Gabriel
Bicalho, um dos fundadores e idealizadores do Aldravismo, apresenta uma
característica peculiar e metonímica em seu livro de poesias
Caravelas [redescobrimentos]. As palavras se abrigam numa exploração
sonora pungente, trazendo a possibilidade de se arriscar a velejar muito
além da pós-modernidade. Ele traça a ideia metonímica,
chamando o leitor a navegar em sua caravela, aquela que ainda hoje traz
a possibilidade dos redescobrimentos, num continente onde se ancoram poesias.
marinha
V
era brisa
marinha
levando
minha
poesia
pois ia
ia
(BICALHO, Gabriel, 2006)
A
obra do poeta J.S. Ferreira revela-se em temas marianenses como metonímias
da cidade mineira, à luz do texto fotográfico e em seus
narrapoemas, pequeno na forma, como o badalo do sino ou no meio da rua
com sua pena garimpando a poesia na simplicidade lírica das palavras.
Rua
Direita
Rua Direta
de casas tortas:
na sacada
de pedra-sabão
a musa
perfeita
e um poeta
apaixonado
à porta.
Aleijadinho
Deformadas:
as mãos.
Perfeitas:
as obras!
(FERREIRA,
J.S. 1996)
J.B.Donadon-Leal,
criador da base teórica de sustentação metonímica
da literatura e da arte aldravista, com sua ideia equilibra as percepções
do escritor e do leitor. Sua poesia tende a apresentar pequenas coisas
que fazem parte do cotidiano, mas que não são mais percebidas
pelo olhar automatizado, descuidado dos olhares seduzidos pelas totalidades.
Descuido
Sempre tive a mania
de recolher
se os encontro jogados por aí
parafusos
pregos
porcas
arruelas
pequenos objetos que
de vez em quando
a gente os procura
desesperado.
Nunca, porém, tive o cuidado
de recolher
se os encontro
descuidado
olhares
afagos
palavrinhas
pequenos carinhos que
a gente necessita
desesperado.
(DONADON-LEAl, J.B., 1997)
Mudando
o foco, esse mesmo estudioso deve empreender leitura de clássicos,
para construção de arquivos de memória de memórias
que subsidiem a construção de novas interpretações
de sujeitos estéticos. Ítalo Calvino diz que quando mais
são lidos e apreciados os clássicos, eles conseguem estabelecer
relação pessoal com seus leitores; mas se isso não
ocorre, os clássicos passam a ser lidos por obrigação
e não por amor ou prazer.
[...] os clássicos não são
lidos por dever ou por respeito, mas só por amor. Exceto nas escolas:
a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal um certo
número de clássicos dentre os quais (ou em relação
aos quais) você poderá depois reconhecer os “seus”
clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para
efetuar uma opção, mas as escolhas que contam são
aquelas que ocorrem fora e depois de cada escola. (CALVINO, 1993, p.13)
Calvino defende a ideia de que a leitura de um clássico
torna-se efetiva na vida do leitor, quando é possível estabelecer
uma relação de empatia e de pessoalidade com que o lê.
É também, segundo ele, nas leituras desinteressadas que
pode acontecer deparar-se com aquele que se torna o “seu”
livro. (1993).
É importante reler um livro, principalmente na idade madura. A
segunda leitura sempre será diferente da primeira e assim sucessivamente.
Reler um livro para Ítalo Calvino, na idade madura é:
[...]
reencontrar aquelas constantes que já fazem parte de nossos mecanismos
interiores e cuja origem havíamos esquecido. Existe uma força
particular da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que
deixa sua semente. (...) Por isso, deveria existir um tempo na vida adulta
dedicado a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os
livros permaneceram os mesmos (mas também eles mudam, à
luz de uma perspectiva histórica diferente), nós com certeza
mudamos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo. (CALVINO,
1993, p.10-11)
Poderíamos
perguntar por que é mais profícuo reler os clássicos
na idade madura. Calvino diz que é melhor ler os clássicos
do que não lê-los e que reler um grande livro na idade madura
é um prazer extraordinário se comparado a leitura da juventude,
pois dominamos novos universos discursivos (cada fronteira desbravada
pela leitura representa um novo universo discursivo, ou seja, um novo
conjunto de conhecimentos).
Para Zilberman (2009), a obra de arte não consiste
num valor imutável, portanto consolidada e fechada para novas interpretações.
A verdadeira leitura é um ato de reciprocidade, de dinâmica,
de resposta ao texto. A obra exige do leitor, também sujeito participante
e estético, decodificação, com infinitas possibilidades
de interpretações e de leitura. Segundo ela:
[...]
é o recebedor que transforma a obra, até então mero
artefato, em objeto estético, ao decodificar os significados transmitidos
por ela. Em outras palavras, a obra de arte é um signo, porque
a significação é um aspecto fundamental de sua natureza,
mas ela só se concretiza quando percebida por uma consciência,
a do sujeito estético. (ZILBERMAN, 2009, p. 21)
Compreender
os clássicos é melhor e mais prazeroso, do que simplesmente
relê-los, por ofício ou obrigação. Dessa forma,
a releitura de um clássico na maturidade, como por exemplo, Odisseia,
epopeia de autoria de Homero, autor do século IX antes de Cristo,
no século XXI, por estudantes de Letras ou de outros cursos é
um desafio. Desafio porque estamos em época de crises e desvalorização
das Humanidades, época propícia para estudos científicos
e tecnológicos, dos Estudos Culturais e estrangulamento da Literatura
em estudos interdisciplinares; época de correria, ativismo à
flor da pele, tensões de diversas naturezas e falta de tempo para
introspecção e para a leitura. O século XXI exige
ação e não inação, elege a extroversão
e não a introversão, requer seres polivalentes, poliglotas,
politecnológicos, poliartísticos, polidesenvolvidos; o prefixo
“poli” é bem-vindo a contemporaneidade. Mais uma vez
é necessário recorrer a Ítalo Calvino para explicitar
o motivo de ler Odisseia nos dias de hoje ou em qualquer época.
O estudioso deixa claro que os clássicos servem para entender quem
somos e aonde chegamos. E para que serve saber quem somos e aonde chegamos,
se mal temos tempo de fazer múltiplas atividades do dia-dia? Certamente
para refletir, analisar e pensar, se é que temos tempo, desejo
e paciência para concluir, que a leitura de clássicos bem
traduzidos das estórias e lendas de navegações nos
abre o mundo da imaginação, dos sonhos, das múltiplas
facetas do ser humano em tensão ao mundo dos deuses, das ninfas,
dos agravos da natureza, das leis burladas pelo homem e suas duras consequências,
que o levará ao castigo divino.
Não é difícil, muito menos impossível,
fazer da Odisseia nosso livro de cabeceira. A estória contada por
Homero, divinamente traduzida por Donaldo Schüler, divide-se em três
conjuntos: 1-o protagonista do enredo é o filho de Odisseu, Telêmaco,
que sai em viagem precipitada e escondida, mas abençoada por Pala
Atena, (deusa do Olimpo) a procura de seu pai desaparecido na Guerra de
Tróia; 2- o segundo dá voz ao personagem principal e central
da epopeia, Odisseu, que relata aos feáceos sua participação,
trajetória, sofrimentos, peripécias, castigos divinos, morte
de seus soldados e amigos na Guerra de Tróia e as inúmeras
dificuldades, tensões e horrores que sofreram ao tentar retornar
à pátria, em Ítaca; 3- o terceiro conjunto é
também centralizado na figura do grande Odisseu, o herói
imbatível e destemido, protegido e auxiliado por Pala Atena. O
canto se inicia com a partida de Odisseu da corte do rei Alcínoo,
em Esquéria e seu retorno à Ítaca, pátria
amada. Odisseu tem uma nova missão: desmascarar e abater todos
os seus inimigos (o conluio de pretendentes em seu reino), que desejavam
casar com Penélope, sua esposa; matar seu filho, Telêmaco
e roubar todos os seus bens. Não nos cabe contar todas as tensões
vividas pelo herói, suas múltiplas facetas e peripécias
perante às dificuldades do navegador homem-herói, que se
distancia do mundo grego, considerado o único civilizado, para
navegar por mares desconhecidos, passar por inúmeras privações
e dificuldades colossais, tanto terrenas, quanto divinas.
O leitor encontrará na tradução
de Donaldo Schüller, diálogo entre nosso tempo e outros tempos.
O tradutor teve preocupação homérica em afrouxar
a carga sintática e vocabular, mantendo diálogos límpidos
e atualizados. Os personagens renasceram para nosso dizer coloquial e
para nosso vocabulário de hoje. Os ritmos dos cantos são
livres, próximos à mobilidade do hexâmetro homérico.
Os leitores não encontrarão dificuldades na compreensão
da obra em sua plenitude, pois a leitura é fluida, prazerosa, encantadora,
frutífera, jocosa, apaixonante, que só lendo Odisseia, traduzida
por Donaldo Schüller, para constatar que a preocupação
do tradutor não foi a de somente atualizar os cantos e diálogos
da obra, mas de torná-la acessível a distintos públicos
de leitores e ao mundo contemporâneo. Não encontraremos nos
três volumes, notas de rodapé que dificultam a leitura, tornando-a
enfadonha e fragmentada. Também não encontraremos expressões
anacrônicas, arcaicas e herméticas. A leitura, a todo o momento,
será coberta de emoções, sonhos e poeticidade.
Eis algumas passagens marcantes em Odisseia, que faz
lembrar aforismos, isto é, mensagens que exprimem preceito moral
e reflexão para vida:
Todos
os homens carecem de amparo divino. (HOMERO, 2007, p. 65)
Verdade é que a morte, comum a todos, nem dos deuses poderiam afastá-la...
A Moira (morte) implacável não poupa ninguém. (HOMERO,
2007, p. 75) O Olimpo penetra no Éter acima das nuvens. Lá
os bem-aventurados folgam o dia todo. (HOMERO, 2008, p. 43) Baixem as
armas, itacenses. Cessem o conflito. Poupem seu próprio sangue.
Vá cada um para seu lado... Pará! Larga é a visão
do pai de deuses e de homens. Não provoques, de arma em punho,
a ira de Zeus. Odisseu dobrou-se contente à ordem da deusa, que
estabeleceu um tratado de paz entre os partidos em conflito. (HOMERO,
2008, p. 345)
O
final da epopeia elucida a importância da paz, necessária
em qualquer época. Conflitos, lutas, disputas acirradas, desleais
e sem fim levarão o homem à barbárie e à autodestruição.
Ira e raiva são sentimentos perniciosos ao homem e à vida
em sociedade. A epopeia nos revela importantes ensinamentos e a desbravar
em mares tempestivos, nosso mundo interior marcado de incertezas, inseguranças
e fraquezas. Odisseia canta também mares navegados e nunca navegados,
ensina a desbravar caminhos, veredas e intempéries, pois fala do
mundo, no mundo e para o mundo.
Dando prosseguimento à leitura da obra de Homero,
falemos agora de Ilíada – A Guerra de Troia. Os cantos engendrados
nos “atira” para uma zona de conflitos, através de
lutas e batalhas em grandes pelejas, entre gregos e troianos, que chacinam
uns aos outros, num morticínio sem fim. A Guerra de Troia foi motivada
pelo sequestro da sedutora Helena, esposa do rei de Esparta, Menelau,
por Páris, filho do rei de Troia, Príamo.
A leitura de Ilíada nos arranca da zona de conforto, do estado
contemplativo que alguns textos literários nos proporcionam, ou
seja, da zona de contentamento sereno e dócil, como o vai-e-vem
de ondas calmas e azuladas das águas do mar, que acariciam suavemente
a barra da areia ou a encosta rochosa, num ato de embalo.
Ilíada é engendrada de cantos furiosos,
funestos, tensos, fogosos, desejosos, similares às águas
bravias do mar escuro, maculado de sangue humano, que querem “furar”
a rocha ou varrer grãos de areias da praia, tamanha ira e cólera.
Apesar de a Guerra de Troia ter sido motivada pelo desejo
incontrolável de Páris por uma mulher casada, quem luta
bravamente (sem desejar obstinadamente a glória, mas a preservação
das raízes troianas, dos princípios como ser humano, a vida
de sua família e do povo troiano) é o sóbrio Heitor,
filho querido do rei Príamo.
A ira de Aquiles, entretanto, é motivo central do drama, conforme
o primeiro canto da epopeia, que solicita à deusa que cante a cólera
de Aquiles, valoroso guerreiro grego, que teve sua cativa Briseide, arrebatada
pelo rei Agamêmnon.
Aquiles personifica a figura central do herói
da epopeia, gerado por uma deusa com um imortal, homem de força
destacável. Aquiles, entretanto, não se desenha como herói.
Talvez seja ele um anti-herói, com excessivas atitudes de ira,
cólera, soberba, orgulho e vaidade, pois busca satisfazer seus
interesses, a busca da honra ao preço do sacrifício e sofre
desmedidamente quando Briseide (sua amada) lhe é retirada ou quando
seu amigo, Pátroclo, é morto por Heitor. O anti-herói
esquece a divergência com os gregos para aniquilar com uma lança
na garganta, o assassino de seu amigo, o troiano Heitor. A ira de Aquiles
atinge o ponto máximo após matar o filho de Príamo
e arrastar o cadáver em volta do túmulo de Pátroclo.
Após intervenção de Zeus, ele aceita devolver o cadáver
para as honras funerais. O final da epopeia descreve a devolução
do corpo de Heitor à sua pátria e à sua família,
término da ira desmedida de Aquiles, quando a compaixão,
finalmente, toca o seu ser.
O mito também está presente na maior parte
dos cantos da epopeia, nas ações e intervenções
divinas de deuses e deidades, que lutam e defendem lados opostos da guerra;
alguns tomando partido dos troianos, outros dos gregos.
Para Roland Barthes, o mito não é nada
mais do que uma fala. Segundo ele:
[...]
naturalmente não é uma fala qualquer. São necessárias
condições especiais para que a linguagem se transforme em
mito. [...] (BARTHES, 1993, p. 131)
Dessa
forma Barthes julga que tudo no universo pode ser mito, pois qualquer
objeto pode “passar de uma existência fechada, muda, a um
estado oral, aberto à apropriação da sociedade”...
(1993). Ilíada ilustra essa apropriação, pois a linguagem
transforma homens em deuses ou deuses em homens; não simplesmente
porque fala dos deuses, pois deuses são apenas deuses, seres divinos,
impalpáveis, invisíveis, despidos de ações
humanas, mas os “deuses de Homero”, em Ilíada, apresentam
visão antropomórfica; têm poderes divinos, mas “sangram”
como mortais, quando recebem “a ponta da fecha” em seu corpo.
Os deuses de Ilíada são também
vaidosos, vingativos, desejosos, invejosos, rivais, egoístas, ardilosos,
criados talvez, propositalmente por Homero para cantar, destacar ou até
mesmo escancarar fraquezas, rivalidades e dilemas humanos em suas frequentes
interferências na Guerra de Troia.
Ilíada nos tira da zona de conforto quando começamos
a leitura dos cantos, pois fala da guerra, da grande peleja, do morticínio
que parece não ter fim, da rivalidade, do ódio e da vingança,
todos em escalas gigantescas (desmedidas), como se os personagens “saltassem”
do texto para enfiar suas lanças pontiagudas no coração
do leitor ou o “alfinetassem” o tempo todo, através
da ação tensa, aventureira, guerreira e divina, que o engenhoso
Homero, magistralmente engendrou nas ações, reações
e vozes dos personagens.
É necessário ler Ilíada nos dias de hoje? Não!
É imprescindível, não só pela singularidade
tensa e pungente, mas porque Ilíada fala para um mundo de rivalidades
e disputas latentes e vivas à condição humana; dos
dilemas constantes, compondo um retrato “real”, vívido,
latente, às vezes, chocante e bárbaro aos olhos, mas que
são nada mais, nada menos, o desejo, a vaidade, a vingança,
a ira e a cólera desmedidos nas ações e sentimentos
do ser humano.
Agora vamos dar um salto para o romance e para uma obra
contemporânea - nossa leitura passará para BALZAC –
O PAI GORIOT. Balzac é exemplo mais contundente para a consolidação
e definição do novo gênero romanesco. Genial observador
do seu tempo, soube como ninguém captar o “espírito”
do século XIX, seja na representação da vida contemporânea,
cotidiana, realística, que caracterizou o romance moderno.
Segundo Bakhtin, o romance é o único gênero por se
constituir, e ainda inacabado. A ossatura do romance enquanto gênero
ainda está longe de ser consolidada, e não podemos ainda
prever todas as suas possibilidades plásticas. Para ele o romance
não tem o cânone de outros gêneros, pois só
o romance é mais jovem do que a escritura e os livros. (BAKTHIN,
397).
A epopeia desejava contar algo digno de ser relatado,
algo que não se equiparava a todo o resto, algo inconfundível
e que merecia ser transmitido em seu próprio nome. Em toda épica
reside, portanto, um elemento anacrônico, por exemplo, nos arcaísmos
homéricos de invocação à musa.
O gênero épico morreu? Não, o romance
vai substituir a epopeia ao incorporar experiências individuais,
ao tornar o herói romanesco solitário e problemático,
nascido no gênero burguês. A burguesia desejava histórias
que as transfigurasse. A literatura do século XIX almejava imediatismo,
rapidez, movimento, transfiguração, revitalização
de algo que existia para reinventá-la.
O herói do romance do século XIX consagra
um herói solitário, despido de poderes e auxílios
divinos. O homem de carne e osso é apresentado em sua condição
humana física, na descrição da habitação,
do vestuário, da convivência social, da fortuna, da pobreza;
e em sua condição humana interior, nas relações
afetivas dominadas por amores e paixões pungentes e avassaladores,
através de quadros pintados com verossimilhança externa
e interna.
O Pai Goriot nos remete à imagem do “herói”
solitário, melancólico e inseguro (personagem central) que,
ao mesmo tempo nomeia o romance denso e complexo.
Balzac é exímio esculpidor do mal da sociedade parisiense
do século XIX. Há de se destacar que Paris, além
de ser palco para as ações do romance, é também
personagem central da obra, pois a polis é descrita a partir de
dois grandes eixos da vida social: a pobreza da Casa Vauquer, e o luxo
das belas mansões e dos salões da alta burguesia.
Na visão Benjaminiana, o leitor de um romance
é solitário, mais solitário do que qualquer outro
leitor (BENJAMIM, 1994). Ora, o leitor de um romance não é
solitário, pois além de estar em companhia do livro, interage
com os personagens, com suas tensões vividas; sofre, chora, ri,
concorda, discorda, penetra no mundo espetacular da narratividade. Não
é somente o leitor de um poema, conforme Benjamin, que está
disposto a declamar ou ler poema em voz alta para um ouvinte ocasional,
mas o leitor do romance também se dispõe a recontar ou indicar
a obra para outros espectadores, ou ainda ler excertos marcantes do texto.
Ao terminar de ler O Pai Goriot, sinto-me como se estivesse
assistindo a quadros sobre o panorama da sociedade francesa do século
XIX e por que não dizer, da própria vida, despida de fantasias,
brilho, inocência, louvores e deslumbramentos. Balzac não
canta a vida, ele fala do seu sentido, do realismo duro das relações
sociais, através de causalidades específicas; observador
magistral de costumes, cuja narrativa tem eco e olhar arguto sobre o mundo.
As obras e escritores apontados demonstraram a importância
de percorrer, de trilhar e de explorar os vastos caminhos da memória
da leitura, não com objetivo e intenção de apontar
perfil ou fazer julgamento de valor em relação às
obras ou gêneros literários, mas traçar quais ficaram
registrados e marcados na memória em distintas fases da vida, imprescindíveis
também à formação da identidade pessoal e
social, especialmente do estudioso da literatura e da leitura, como armazém
de subsídios para que suas interpretações de obras
e vidas literárias possam fluir para além do senso comum.
Leitura como fuga, leitura como prazer da solidão,
leitura como descoberta de si mesmo ou do outro, leitura como possibilidade
de vivenciar e experimentar outras vidas, outros mundos, outras culturas;
não importa o motivo, a escolha, as predileções,
o que importa é que para o estudioso da literatura o ato de ler
pressupõe prazer! Para esse estudioso, a memória de leitura
é ferramenta de trabalho.
A leitura do dia não será a última
estrela da memória, apesar de ocupar lugar destacado em escolhas,
até que novo livro se apresente como vital; o que para o estudioso
da literatura acontece todo dia. Muitos livros ainda serão acrescentados
à memória, infinita; até que o último fio
de lucidez e sopro de vida se apague.
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Página
editada em novembro de 2011
Editor: J. B. Donadon-Leal
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