Paulo
Alberto ARTUR DA TÁVOLA Moretzsohn Monteiro de Barros
A cultura é tão importante quanto gastar dinheiro
com estrada e com saúde.
Natural do Rio de Janeiro, nasceu em 03 de janeiro de 1936. Advogado,
Jornalista, Radialista, Escritor e Professor. Exerceu diversos cargos
em prol da cultura nacional, tais como Presidente da Comissão
de Assuntos Culturais, Educação, Ciência e Tecnologia
do Parlamento Latino Americano, Membro do Parlamento Cultural do Mercosul,
Presidente da Comissão de Educação, Comunicação
Cultura e Esporte e Secretário das Culturas do Município
do Rio de Janeiro. Produtor e apresentador de música erudita
e popular na Rádio Roquette-Pinto. Durante 15 anos foi colunista
do jornal O Globo. Colaborou também com revistas da Bloch Editores
e é cronista destacado.
Alguns livros de sua autoria: Ser Jovem- editora Nova Fronteira-s/d,
Leilão do Mim- editora Nova Fronteira-1987, A Mulher
é Amar - editora Fivestar, Diário Doido Tempo-
Editora Civilização Brasileira-1996, A Telenovela
Brasileira – Editora Globo, Em Flagrante –
editora Ao Livro Técnico, 40 anos de Bossa Nova –
editora Sextante.
Filho
de Paulo de Deus Moretzsohn Monteiro de Barros e de Magdalena Koff Monteiro
de Barros. Formou-se em Direito na PUC-Rio em 1959. Especialista em
Educação pelo Centro Latino-Americano de Formación
de Especialistas en Educación. Professor de Jornalismo da Fundação
Gama Filho em 1960. Professor Chefe da Cátedra de Periodismo
Audiosual na Escola de Peiodismo e Comunicação da Universidade
do Chile entre 1966 e 1968. Professor da Escola Superior de Propaganda
e Marketing do Rio de Janeiro de 1974 a 1975. Produtor e apresentador
de programas de músicas eruditas da TV Educativa e TV Senado
e em várias rádios. Presidente da Rádio Roquete
Pinto. Desde 1968 cronista com publicações nos jornais
O Globo, Última Hora, O Dia e Revista Fatos e Fotos. Deputado
Estadual do Rio de Janeiro de 1961 a 1964. Deputado Feredal pelo Rio
de Janeiro de 1987 a 1995. Senador da República de 1995 a 2003.
Enviou
regularmente crônicas ao Jornal Aldrava Cultural de agosto de
2007 a 08 de maio de 2008.
Morreu no Rio de Janeiro em 09 de maio de 2008, aos 72 anos.
Ouça
crônica autobiográfica de Artur da Távola
"Tenho
a fé como esperança. Em minhas orações
sempre peço a Deus que me ensine a morrer e que me faça
partir com coragem, com a profunda compreensão de que tudo
é um ciclo." (Artur
da Távola - crônica autobiográfica)
A CHAVE
DO PAI NA FECHADURA
A perda de um pai é dos sentimentos mais
difíceis de elaborar, no volume das contradições
que a figura paterna sempre representa. O pai perdido na infância,
na juventude é alguém a quem apenas começamos
a perceber, delinear, compreender e entender em profundidade.
O pai é sempre aquele no qual o filho precisa
colocar o que de ruim e de bom vai descobrindo no ser humano. A grandeza
de um pai se mede pela capacidade de suportar todas essas fases pelas
quais o filho passa na busca de modelos. Tanto a fase na qual o considera
o maior do mundo, como naquela em que o tem como falho, errado, símbolo
de tudo aquilo o que imagina não ser ou querer. Por isso a
morte dele, sobretudo se repentina, priva o filho da continuação
dessa intensa pesquisa preliminar de viver. Com a morte, a visão
que tem do pai torna-se madura e acabada em questão de segundos.
A morte, paradoxalmente às suas perdas, tem o condão
de instantaneamente transformar a figura do pai na imagem que só
o tempo se encarregaria de compor.
No exílio, em 1964, tornei-me íntimo
amigo de um líder comunista bem mais velho que eu, Roberto
Morena. Ele foi uma pessoa importante na minha vida e formação,
mesmo não sendo eu comunista. Chegou a morar em minha casa
no Chile. Inteligentíssimo, operoso, tinha lutado como voluntário
na Guerra Civil Espanhola e, já naquele tempo, defendia idéias
que, anos depois, Gorbatchev tornaria atos concretos com o fim da
União Soviética e o sonho de um socialismo liberal.
Por causa das lutas políticas, ele estava sempre fora de casa,
inúmeras vezes preso. Foi uma grande figura, um patriota. O
filho dele se ressentia da falta do pai e muito brigava com ele nos
naturais impasses da juventude diante da maneira dos mais velhos verem
o mundo. Não o compreendia e manifestava isto com franqueza.
Um dia, comovido e com os olhos úmidos, Roberto
Morena, já na casa dos sessenta e poucos anos, conta-me a relação
difícil com o filho por causa de sua atividade política
e, por isso, faz questão de mostrar, todo orgulhoso, uma carta
dele, da qual destacava um trecho realmente comovente: "Brigamos
muito e por vezes eu não o entendia. Hoje, tenho saudade até
do barulho de sua chave, altas horas da noite, na fechadura da porta
lá de casa".
O barulho da chave na fechadura, funcionando como
elemento de recordação filial, só revela o quanto
aquela alma, então adolescente, se pacificava com a chegada
do pai. Sempre que um pai volta para casa, algo se pacifica no coração
do filho. Aí está o segredo do amor entre pai e filho,
mesmo quando se desentendem: a certeza de que ele traz a segurança
e a base necessária à estabilidade emocional. É
essa base a que se rompe quando um pai parte, sem voltar...
Crônica
lida na Missa de 7º dia do imortal Escritor,
dia 15 de maio de 2008, na Igreja da Paz,
em Ipanema, Rio de Janeiro
PAPO DISPERSIVO SOBRE A PAIXÃO
(última crônica de Artur da Távola,
por ele remetida a Andréia Donadon Leal - Date:
Thu, 8 May 2008 05:24:05)
As
pessoas amam bem mais a expectativa do amor possível, que
o amor propriamente dito. Daí a intensidade dos impulsos
bloqueados, os que estão impedidos de expansão e movimento
na direção do objeto amado.
Os "grandes amores" da literatura são
grandes, não por serem amores, mas por serem impossíveis.
Já os grandes amores da vida real só
quem sente é que sabe. A impossibilidade de dimensionar um
impulso afetivo carrega de energia a fantasia. E esta se encarrega
de dar dimensão ao que o exercício da relação,
talvez, tirasse.
Na paixão impossível só estão
as projeções do que idealizamos, pretendemos ou não
conseguimos viver em nosso cotidiano. Daí ser fácil
entender sua força, sua obsessiva presença na cabeça
dos enamorados.
É por isso, aliás, que só
é musa quem é inatingível.
Case-se com a sua musa e acordará com uma
jararaca...
Case-se com quem ama e será feliz.
Quer se ver livre de uma paixão colossal?
Vá viver com a pessoa objeto da paixão (observem,
por favor, que não estou usando a palavra amor). Aliás,
já está nos clássicos e, mesmo, antes destes,
nos antigos: "A conquista enobrece e a posse avilta".
Ou, como dizia Goethe: "Nas batalhas da paixão, ganha
aquele que foge".
Quantas vezes as relações humanas
terminam ou se interrompem sem terem esgotado o potencial de possibilidades
adivinhadas, intuídas, sentidas. Aí, o que não
se esgotou clama por vir à tona e, muitas vezes, ameaça
ocupar (e às vezes ocupa, efetivamente) todo o "ego".
Não é por outra razão que
o apaixonado é o maior dos egoístas.
Ao dedicar tudo ao objeto da paixão, está
é alimentando a própria necessidade, seja de sofrimento,
de idealização, de felicidade ou fantasia.
Entupido de impossibilidades, ele clama. E a isso
muitos chamam amor.
Mas amor é coisa muito diversa...
Amor não clama nem reclama: amor dá.
Date:
Thu, 8 May 2008 05:24:05 -0300
Leitoras e Leitores: encaminho-lhes a Crônica de hoje
Fraternalmente, Artur
da Távola
"Sou
em obras"
(Artur da Távola - crônica autobiográfica)
ACONTECEU ANTES DO TEIPE
Já
pensou em televisão nos tempos em que os programas eram todos
ao vivo? Errar não tinha remédio. Tudo se concentrava
no momento de ir ao ar, quando os detalhes deveriam estar bem estudados.
Aqueles tempos eram, também, de grande improvisação,
típica, aliás, das fases de implantação
de um meio tão complexo como a televisão. O resultado?
Volta e meia acontecia um daqueles acidentes sem remédio. Cito
dois:
1.
São Paulo. Anos 50. O ator Milton Ribeiro, famoso por seu desempenho
em "O Cangaceiro", fazia na TV um programa da série
"TV Mistério", na Tupi. Contracenava com Lima Duarte
no final da obra, quando este lhe dava um "tiro" mortal. Deu,
e ele "morreu". Câmeras avançam e big close up
do rosto do morto para a entrada da música final. De olhos fechados,
"o morto" nada podia ver. Nem se a cena já acabara.
Pensa que sim, e abre primeiro um olhão, depois outro. Mas continuava
em cena, o que não podia saber, pois a luzinha da câmara
estava enguiçada. O diretor berrava "Morre, desgraçado,
morre!" O som da sua voz saía pelo fone do cameraman, chegando
ao ouvido do ator que, subitamente, voltou a "morrer", agora
para divertimento dos que estavam em casa e desespero do diretor. Afinal
ele preparara o maior suspense para aquela cena final, uma cena final
"bem realista", como havia recomendado.
2.
Sexta-feira da Paixão, "A Vida de Cristo". Anos 60,
TV Tupi. Em plena crucificação, música forte, cortes
nos rostos dos atônitos assistentes da cerimônia no Calvário,
cortes para o rosto suado e sofrido do ator. Câmeras ao rés
do chão tomavam-no de baixo para cima em ângulo de exaltação.
Por impossibilidade técnica de simular as mãos pregadas
à cruz, o ator segurava na madeira por trás, quando, no
exato momento do close de seu rosto para o "gran finale",
a mosca lhe pousa no nariz. Tenta espantá-la fungando. Nada.
Move o rosto. Nada. Cócegas aumentando. Nada. Ela inicia o passeio
por seu nariz. Desesperado, o diretor de TV saiu do close-up temendo
um espirro, e deu um plano geral para não se verem as caretas.
Pois, nesse exato momento, o ator, vencido pelas cócegas, larga
a cruz e espanta a mosca com um safanão liberador...
Crônica
enviada para Andréia Donadon por Artur da Távola em 30/04/2008
A
MULHER, O AMOR, A LIVRE ESCOLHA
O
grande triunfo da independência é o de poder escolher.
O esmagamento de séculos levou a mulher a ser sempre escolhida.
Em casos mais graves, a supor que se adaptava; a convencer-se de que
amava. Essa dependência absoluta marcava de sofrimento e dor
os atos do amor. Talvez até se considerasse amor tudo o que
causasse sofrimento para fazer. A capacidade de sofrer parecia ser
relacionada à grandeza de amar.
Mesmo quando a mulher supunha escolher o ser amado, ela estava sendo
escolhida. Havia razões de classe social, de submissão
a gostos médios impostos pela própria cultura, pela
necessidade de amparo, de segurança, de futuro para ela e os
filhos, de companhia na velhice, e assim.
Já o sistema a escolhia para aquelas tarefas necessárias
à estabilidade dele (sistema) e dos homens (seus titulares),
fazendo-a suportar a barra doméstica, espécie de refúgio
do guerreiro, em vez de seu lugar de felicidade. Serva-sacerdotisa
desse refúgio, a mulher era escolhida pelo poder dominante
que precisava dela nessas funções. A rigor, portanto,
não era dado à mulher escolher. Nem no amor. Acabava
deixando-se escolher por quem "era melhor" para ela.
A independência é sempre penosa, machucante e difícil.
Mas ela tem uma única e maravilhosa vantagem: dá o direito
de escolher. Escolher a própria vida, os rumos a tomar, a ética,
o lugar para morar, as roupas, os amigos e acima de tudo o amor.
Escolher o amor é encontrar e descobrir quem é para
nós e não quem é ótima pessoa, ótimo
marido, amante ou namorado; ou ótima esposa, amante ou namorada.
Escolher é ter essa rara oportunidade de saber a hora do amor,
ainda que pareça tarde. Escolher é exercer a independência
em nome da qual serão aceitas todas as dependências aderentes
às relações.
O amor só emerge quando há liberdade suficiente para
a independência, ou coragem de enfrentar a falta de liberdade
envolvente (cultura, econômica, política) no sentido
de buscar as suas opções fora das imposições
diretas ou disfarçadas de todos esses mecanismos de poder.
O amor só floresce quando se pode escolher e ser escolhido(a)
num só e misterioso ato que não se explica nem conceitua,
mas é claríssimo nas raras vezes em que se torna evidente.
“Puxa, como você é complicado!’’ Sabe
quando alguma coisa fica martelando em seu ouvido a ponto de incomodar?
Pois aconteceu comigo, após aquela cena, em que um amigo sentenciava
o outro. O jovem, algo tímido, ouviu a terrível sentença
(julgamento do outro) e não conseguiu esconder a expressão
agoniada de um inocente que, por uma simples frase, torna-se culpado,
errado, sei lá, só sei que era um olhar que merecia
ser defendido. Como o assunto interessa a todos nós, lanço-me
na defesa da sensibilidade de um jovem a quem mal conheço.
Para quem o chama de complicado, papo-cabeça e o ofende, como
explicar que a complexidade é rica, significante, cheia de
caminhos maravilhosos, vários dos quais bloqueados até
por você mesmo, o complicado? As porteiras e os mata-burros
de nossos caminhos interiores são construídos por nós
mesmos.
E quem o fez, talvez esteja temendo caminhar com você pelas
vias da sua criatividade interior, que o poderia confundir. É
mesmo mais fácil escolher um só caminho e acreditar
nele. Mais fácil e mais falso... Talvez aquela pessoa agressiva
com você não esteja querendo (nem podendo) ver a força
dos mundos interiores (ou as várias faces do mundo) que você
tem para oferecer a quem topar a aventura de conhecer o seu próprio
mundo interior. É que as pessoas preferem a vida de relação,
o “conhecimento’’ externo, aos mergulhos no fundo
da densidade e da complexidade humanas.
Quando alguém diz ‘’Conheço fulano como
a palma da minha mão’’, na verdade quer dizer que
já tem o fulano na palma da sua mão e que a relação
entre eles é tão superficial que ele até pode
dominar o outro. E a realidade é diversa. Quando alguém
é “conhecido” por não ser “complicado”,
esse alguém se fechou à criatividade interior, e o que
você conhece dele é pouco, ou nada. É o que ele
lhe concede. Complicação uma ova! Naquele jovem, chamado
de complicado, latejava sensibilidade rica, capaz de ver e sentir
os “vários caminhos do mundo”.
Leve com orgulho a sua complicação, jovem amigo. Ser
complicado é passar a vida fingindo ou fazendo força
para ser igual. Ser complicado, enfim, meu jovem e assustado amigo,
é estar aberto para o mundo, conseguindo vê-lo sem ódio
e a raiva com que se é visto por se colocar sensibilidade e
amor demais onde as pessoas querem menos, seja por comodismo, cansaço
ou mesmo por burrice.
UM FILHO RAPAGÃO A DORMIR
Lembro-me
de repente de um instante no passado: um de meus filhos, então
rapaz, a dormir no sofá da sala, o livro caído a seu lado.
Em um filho jovem, mesmo um latagão, a dormir, aflora a criança
desvalida e fraca. Some a expressão dos olhos, os significados
da voz de machinho, descansam os músculos faciais que definem
os traços representativos dos disfarces e defesas que inventamos
para sobreviver.
Um rosto de jovem, deitado e de olhos fechados, faz cessar por instantes
as intensidades e discordâncias daquele novo ser pulsátil,
cheio de idéias, atitudes, pontos de vista, competições,
raiva, até, da dependência de tantos anos aos pais. Há
um breve retorno à desproteção da infância,
que renova no pai uma forma poética e emocionada de apego aos
filhos.
Raras vezes nos é permitido reter a infância dos filhos,
esvaída na ânsia de descobertas e justas independências,
quando eles "ajovecem". Ao contemplá-los assim, fortes
mas vulneráveis, dentro de nós latejam misteriosas intensidades.
Somos pedaços de complexidade ganindo ânsias de harmonia
e integração. Dentro de nós lavra um afã
constante, preparação do vir-a-ser. É a evolução,
inevitável. Somos um esforço sem trégua para alcançar
um "adiante" que engendrará novas disposições
de avanço na direção do não se sabe. Somos
pedaços de cansaço feliz por buscar o que, alcançado,
transforma-se em plataforma de novos embarques. Somos um lindo e conturbado
espetáculo de luta e jardim. Somos a natureza no esforço
de existir e propagar a espécie. Somos a expressão dolorosa
da ânsia de existir. Assim somos. A/penas. E vemo-nos como tal
no filho rapagão a dormir.
Por isso, quando de olhos abertos, falando, pregando, querendo, clamando,
postulando ou dizendo, somos um cansaço em andamento; somos o
nosso doloroso miolo, busca constante de transcendência, transparência
e harmonia, ideais da divindade que mora em nós, incompleta,
sempre em andamento, em busca da transformação, como o
universo.
Mas ver o filho a dormir ali, jovem, descuidado, grandalhão,
é encontrar a criança que nele mora. E é ser pai
de novo. Por certo quem me lê já viveu essa emocionada
alegria antecipatória de saudades que se aproximam.
O CORPO COMO EXPRESSÃO
O que inspira esta crônica é o Carnaval com a explosão
de imagens de belíssimas mulheres e seus corpos (semi)nus.
Continuamos presos ao ideal grego do corpo como expressão. Lá,
havia o empenho de passar, através do corpo, a idéia do
equilíbrio. O corpo seria, ele também, uma expressão
do "métron", a justa medida de cada coisa, pessoa,
ou sentimento.
Hoje, uma olimpíada vivida em escala mundial via televisão
a cada quatro anos, ou outras competições desportivas,
levam o público a uma vivência intensa de aspectos ligados
a filosofias de vida que têm no corpo a expressão máxima
de virtude. O corpo representa nacionalismos, doutrinas, valores em
jogo no vaidoso tabuleiro político de todas as nações.
O homem ainda vive estágio competitivo de sua evolução.
O corpo (bem mais que o espírito) é o elemento preponderante
de toda a sociedade em que vivemos, da qual a televisão é
importante janela, significativa mostra que deve ser analisada (a TV)
em vez de julgada, ou, como é no Brasil, condenada, sem qualquer
forma de julgamento e muito menos de análise.
O corpo está no centro das difusas e díspares concepções
estéticas de nosso tempo. Nem bem, mais, pode-se falar de uma
idéia do "belo em si" como o imaginava Platão,
para quem o "belo" era o grande pórtico do "bem".
O "belo" ajudaria a entrada no território do "bem".
O "belo" na sociedade-organização de nossos
dias, filha da industrialização, escapou da noção
estética do "frui" (ou seja, do prazer) e encharcou-se
da noção do "utis" (ou seja, da utilidade).
Vale dizer, deixou de ser objeto de fruição, adoração,
contemplação, reflexão, expressões de valores,
digamos, espirituais, e mudou-se para o território da utilidade.
Vivemos o tempo do belo útil (será fútil?) funcional,
ativo, parte externa e visão imediata e decorativa, enfeite ideológico
a proclamar virtudes do sistema produtor. O corpo não é:
serve para.
O belo contemplação, fruição, tentativa
de beleza em si, transmuda-se no belo aplicado (logo, útil) a
formas industriais, à produção (e consumo!...)
em massa de bens materiais ou culturais. O artista se incorpora à
produção e o seu apuro estético não mais
vai para a obra isolada, e sim para a "arte-final" da peça
publicitária. Não vai para a sinfonia, mas para a sonoplastia...
Deixa de pertencer à obra, e passa a pertencer ao mercado.
AS
MINHAS BUGIGANGAS, SALVE!
Pertenço
a essa estranha espécie existente entre os mortais, que tem mania
de guardar inexplicáveis coisas nas gavetas. Admiro os cidadãos
de mesa limpinha, os que têm coragem de jogar fora papéis,
orações no verso de santinhos, vidros velhos de homeopatia,
marcadores de livros com mensagens edificantes, benjamins para alguma
utilidade, fio dental, radinhos de pilha velhos.
Eu não. Acumulo-os por motivos misteriosos, pois reconheço
inexistir lógica ou coerência em fazê-lo. Há
algo que dói em mim ao jogar fora qualquer resultado do trabalho
humano. E, na dúvida, guardo. Fios velhos, pilhas que não
gastaram até o fim, clips enferrujados, um olho de boi contra
a inveja e o mau olhado, um pente de osso reserva do principal que anda
no bolso de trás, dois ou três comprimidos que sobraram
da última vez em que tomei anti-inflamatório, alguns comprimidos
de Magnésia Bisurada, uma régua velha rachada, os elásticos
que recebi e não joguei fora, bloquinhos, uma prece milagrosa
para Santo Antônio de Categeró, que diz: "Oh Santo
Antônio de Categeró, estendei Vossas mãos agora
mesmo sobre mim, livrando-me dos desastres, da inveja e de todas as
obras malignas".
Lá podem ser encontrados, ademais: um caderninho com sugestões
de remédios da flora que, possivelmente, nunca usarei, mas me
traz segurança tê-lo por perto, mais suas maravilhas curativas:
a pomada cipó azougue, a pomada Calêndula, palavra que
ademais é linda e fico a repetir, Calêndula, Calêndula,
e aconselha ainda o afamado colírio de cinerária marítima
que, com um nome assim elegante, deve possuir formidável poder
de sarar.
Salve as minhas bugigangas! Mania de reter o que me parece latejar de
boas intenções, espécie de "ter poético"
ao qual raramente recorro, mas do qual chego a sentir a pulsação
de significados ocultos e meio mágicos. Coisa de doido, de poeta
ou de velho mesmo. Ou, então, utilizo-me de minhas quinquilharias
apenas para escrever uma crônica leve e não entupir o seu
fim de semana com graves ou furibundas considerações,
que isso não se faz.
|
Crônica
autobiográfica
Clique na imagem e ouça |
FRASES
DE ARTUR DA TÁVOLA (Crônica autobiográfica)
Meu
pai era um homem triste, calado e temeroso.
Minha mãe, uma mulher valente: máximo de coragem no máximo
de temor.
Sou
um permanente ser em dúvida.
Não
sou pronto, sou constantemente em obras internas. Sou em obras.
Ninguém
perdoa um autodidata: um ser que ensina a si próprio e se descobre
nos caminhos da existência. O autodidatismo marcou minha vida.
Fui
obrigado a compreender para sobreviver; este processo marca a minha
vida.
A
bondade é um elemento que marcou minha vida.
Tenho
a fé como esperança. Em minhas orações sempre
peço a Deus que me ensine a morrer e que me faça partir
com coragem, com a profunda compreensão de que tudo é
um ciclo.