Jornal Aldrava Cultural
A Crônica de Artur da Távola

Artur da Távola (*03/01/1936 - +09/05/2008)


Artur da Távola

Paulo Alberto ARTUR DA TÁVOLA Moretzsohn Monteiro de Barros
A cultura é tão importante quanto gastar dinheiro com estrada e com saúde.

Natural do Rio de Janeiro, nasceu em 03 de janeiro de 1936. Advogado, Jornalista, Radialista, Escritor e Professor. Exerceu diversos cargos em prol da cultura nacional, tais como Presidente da Comissão de Assuntos Culturais, Educação, Ciência e Tecnologia do Parlamento Latino Americano, Membro do Parlamento Cultural do Mercosul, Presidente da Comissão de Educação, Comunicação Cultura e Esporte e Secretário das Culturas do Município do Rio de Janeiro. Produtor e apresentador de música erudita e popular na Rádio Roquette-Pinto. Durante 15 anos foi colunista do jornal O Globo. Colaborou também com revistas da Bloch Editores e é cronista destacado.
Alguns livros de sua autoria: Ser Jovem- editora Nova Fronteira-s/d, Leilão do Mim- editora Nova Fronteira-1987, A Mulher é Amar - editora Fivestar, Diário Doido Tempo- Editora Civilização Brasileira-1996, A Telenovela Brasileira – Editora Globo, Em Flagrante – editora Ao Livro Técnico, 40 anos de Bossa Nova – editora Sextante.

Filho de Paulo de Deus Moretzsohn Monteiro de Barros e de Magdalena Koff Monteiro de Barros. Formou-se em Direito na PUC-Rio em 1959. Especialista em Educação pelo Centro Latino-Americano de Formación de Especialistas en Educación. Professor de Jornalismo da Fundação Gama Filho em 1960. Professor Chefe da Cátedra de Periodismo Audiosual na Escola de Peiodismo e Comunicação da Universidade do Chile entre 1966 e 1968. Professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro de 1974 a 1975. Produtor e apresentador de programas de músicas eruditas da TV Educativa e TV Senado e em várias rádios. Presidente da Rádio Roquete Pinto. Desde 1968 cronista com publicações nos jornais O Globo, Última Hora, O Dia e Revista Fatos e Fotos. Deputado Estadual do Rio de Janeiro de 1961 a 1964. Deputado Feredal pelo Rio de Janeiro de 1987 a 1995. Senador da República de 1995 a 2003.

Enviou regularmente crônicas ao Jornal Aldrava Cultural de agosto de 2007 a 08 de maio de 2008.
Morreu no Rio de Janeiro em 09 de maio de 2008, aos 72 anos.


Ouça crônica autobiográfica de Artur da Távola

"Tenho a fé como esperança. Em minhas orações sempre peço a Deus que me ensine a morrer e que me faça partir com coragem, com a profunda compreensão de que tudo é um ciclo." (Artur da Távola - crônica autobiográfica)

A CHAVE DO PAI NA FECHADURA

   A perda de um pai é dos sentimentos mais difíceis de elaborar, no volume das contradições que a figura paterna sempre representa. O pai perdido na infância, na juventude é alguém a quem apenas começamos a perceber, delinear, compreender e entender em profundidade.
   O pai é sempre aquele no qual o filho precisa colocar o que de ruim e de bom vai descobrindo no ser humano. A grandeza de um pai se mede pela capacidade de suportar todas essas fases pelas quais o filho passa na busca de modelos. Tanto a fase na qual o considera o maior do mundo, como naquela em que o tem como falho, errado, símbolo de tudo aquilo o que imagina não ser ou querer. Por isso a morte dele, sobretudo se repentina, priva o filho da continuação dessa intensa pesquisa preliminar de viver. Com a morte, a visão que tem do pai torna-se madura e acabada em questão de segundos. A morte, paradoxalmente às suas perdas, tem o condão de instantaneamente transformar a figura do pai na imagem que só o tempo se encarregaria de compor.
   No exílio, em 1964, tornei-me íntimo amigo de um líder comunista bem mais velho que eu, Roberto Morena. Ele foi uma pessoa importante na minha vida e formação, mesmo não sendo eu comunista. Chegou a morar em minha casa no Chile. Inteligentíssimo, operoso, tinha lutado como voluntário na Guerra Civil Espanhola e, já naquele tempo, defendia idéias que, anos depois, Gorbatchev tornaria atos concretos com o fim da União Soviética e o sonho de um socialismo liberal. Por causa das lutas políticas, ele estava sempre fora de casa, inúmeras vezes preso. Foi uma grande figura, um patriota. O filho dele se ressentia da falta do pai e muito brigava com ele nos naturais impasses da juventude diante da maneira dos mais velhos verem o mundo. Não o compreendia e manifestava isto com franqueza.
   Um dia, comovido e com os olhos úmidos, Roberto Morena, já na casa dos sessenta e poucos anos, conta-me a relação difícil com o filho por causa de sua atividade política e, por isso, faz questão de mostrar, todo orgulhoso, uma carta dele, da qual destacava um trecho realmente comovente: "Brigamos muito e por vezes eu não o entendia. Hoje, tenho saudade até do barulho de sua chave, altas horas da noite, na fechadura da porta lá de casa".
   O barulho da chave na fechadura, funcionando como elemento de recordação filial, só revela o quanto aquela alma, então adolescente, se pacificava com a chegada do pai. Sempre que um pai volta para casa, algo se pacifica no coração do filho. Aí está o segredo do amor entre pai e filho, mesmo quando se desentendem: a certeza de que ele traz a segurança e a base necessária à estabilidade emocional. É essa base a que se rompe quando um pai parte, sem voltar...

Crônica lida na Missa de 7º dia do imortal Escritor,
dia 15 de maio de 2008, na Igreja da Paz,
em Ipanema, Rio de Janeiro


PAPO DISPERSIVO SOBRE A PAIXÃO
(
última crônica de Artur da Távola, por ele remetida a Andréia Donadon Leal - Date: Thu, 8 May 2008 05:24:05)

   As pessoas amam bem mais a expectativa do amor possível, que o amor propriamente dito. Daí a intensidade dos impulsos bloqueados, os que estão impedidos de expansão e movimento na direção do objeto amado.
   Os "grandes amores" da literatura são grandes, não por serem amores, mas por serem impossíveis.
   Já os grandes amores da vida real só quem sente é que sabe. A impossibilidade de dimensionar um impulso afetivo carrega de energia a fantasia. E esta se encarrega de dar dimensão ao que o exercício da relação, talvez, tirasse.
   Na paixão impossível só estão as projeções do que idealizamos, pretendemos ou não conseguimos viver em nosso cotidiano. Daí ser fácil entender sua força, sua obsessiva presença na cabeça dos enamorados.
   É por isso, aliás, que só é musa quem é inatingível.
   Case-se com a sua musa e acordará com uma jararaca...
   Case-se com quem ama e será feliz.
   Quer se ver livre de uma paixão colossal? Vá viver com a pessoa objeto da paixão (observem, por favor, que não estou usando a palavra amor). Aliás, já está nos clássicos e, mesmo, antes destes, nos antigos: "A conquista enobrece e a posse avilta". Ou, como dizia Goethe: "Nas batalhas da paixão, ganha aquele que foge".
   Quantas vezes as relações humanas terminam ou se interrompem sem terem esgotado o potencial de possibilidades adivinhadas, intuídas, sentidas. Aí, o que não se esgotou clama por vir à tona e, muitas vezes, ameaça ocupar (e às vezes ocupa, efetivamente) todo o "ego".
   Não é por outra razão que o apaixonado é o maior dos egoístas.
   Ao dedicar tudo ao objeto da paixão, está é alimentando a própria necessidade, seja de sofrimento, de idealização, de felicidade ou fantasia.
   Entupido de impossibilidades, ele clama. E a isso muitos chamam amor.
   Mas amor é coisa muito diversa...
   Amor não clama nem reclama: amor dá.

Date: Thu, 8 May 2008 05:24:05 -0300
Leitoras e Leitores: encaminho-lhes a Crônica de hoje
Fraternalmente,
Artur da Távola

"Sou em obras"
(Artur da Távola - crônica autobiográfica)


ACONTECEU ANTES DO TEIPE

Já pensou em televisão nos tempos em que os programas eram todos ao vivo? Errar não tinha remédio. Tudo se concentrava no momento de ir ao ar, quando os detalhes deveriam estar bem estudados. Aqueles tempos eram, também, de grande improvisação, típica, aliás, das fases de implantação de um meio tão complexo como a televisão. O resultado? Volta e meia acontecia um daqueles acidentes sem remédio. Cito dois:

1. São Paulo. Anos 50. O ator Milton Ribeiro, famoso por seu desempenho em "O Cangaceiro", fazia na TV um programa da série "TV Mistério", na Tupi. Contracenava com Lima Duarte no final da obra, quando este lhe dava um "tiro" mortal. Deu, e ele "morreu". Câmeras avançam e big close up do rosto do morto para a entrada da música final. De olhos fechados, "o morto" nada podia ver. Nem se a cena já acabara. Pensa que sim, e abre primeiro um olhão, depois outro. Mas continuava em cena, o que não podia saber, pois a luzinha da câmara estava enguiçada. O diretor berrava "Morre, desgraçado, morre!" O som da sua voz saía pelo fone do cameraman, chegando ao ouvido do ator que, subitamente, voltou a "morrer", agora para divertimento dos que estavam em casa e desespero do diretor. Afinal ele preparara o maior suspense para aquela cena final, uma cena final "bem realista", como havia recomendado.

2. Sexta-feira da Paixão, "A Vida de Cristo". Anos 60, TV Tupi. Em plena crucificação, música forte, cortes nos rostos dos atônitos assistentes da cerimônia no Calvário, cortes para o rosto suado e sofrido do ator. Câmeras ao rés do chão tomavam-no de baixo para cima em ângulo de exaltação. Por impossibilidade técnica de simular as mãos pregadas à cruz, o ator segurava na madeira por trás, quando, no exato momento do close de seu rosto para o "gran finale", a mosca lhe pousa no nariz. Tenta espantá-la fungando. Nada. Move o rosto. Nada. Cócegas aumentando. Nada. Ela inicia o passeio por seu nariz. Desesperado, o diretor de TV saiu do close-up temendo um espirro, e deu um plano geral para não se verem as caretas. Pois, nesse exato momento, o ator, vencido pelas cócegas, larga a cruz e espanta a mosca com um safanão liberador...

Crônica enviada para Andréia Donadon por Artur da Távola em 30/04/2008

A MULHER, O AMOR, A LIVRE ESCOLHA

O grande triunfo da independência é o de poder escolher. O esmagamento de séculos levou a mulher a ser sempre escolhida. Em casos mais graves, a supor que se adaptava; a convencer-se de que amava. Essa dependência absoluta marcava de sofrimento e dor os atos do amor. Talvez até se considerasse amor tudo o que causasse sofrimento para fazer. A capacidade de sofrer parecia ser relacionada à grandeza de amar.
Mesmo quando a mulher supunha escolher o ser amado, ela estava sendo escolhida. Havia razões de classe social, de submissão a gostos médios impostos pela própria cultura, pela necessidade de amparo, de segurança, de futuro para ela e os filhos, de companhia na velhice, e assim.
Já o sistema a escolhia para aquelas tarefas necessárias à estabilidade dele (sistema) e dos homens (seus titulares), fazendo-a suportar a barra doméstica, espécie de refúgio do guerreiro, em vez de seu lugar de felicidade. Serva-sacerdotisa desse refúgio, a mulher era escolhida pelo poder dominante que precisava dela nessas funções. A rigor, portanto, não era dado à mulher escolher. Nem no amor. Acabava deixando-se escolher por quem "era melhor" para ela.
A independência é sempre penosa, machucante e difícil. Mas ela tem uma única e maravilhosa vantagem: dá o direito de escolher. Escolher a própria vida, os rumos a tomar, a ética, o lugar para morar, as roupas, os amigos e acima de tudo o amor.
Escolher o amor é encontrar e descobrir quem é para nós e não quem é ótima pessoa, ótimo marido, amante ou namorado; ou ótima esposa, amante ou namorada. Escolher é ter essa rara oportunidade de saber a hora do amor, ainda que pareça tarde. Escolher é exercer a independência em nome da qual serão aceitas todas as dependências aderentes às relações.
O amor só emerge quando há liberdade suficiente para a independência, ou coragem de enfrentar a falta de liberdade envolvente (cultura, econômica, política) no sentido de buscar as suas opções fora das imposições diretas ou disfarçadas de todos esses mecanismos de poder. O amor só floresce quando se pode escolher e ser escolhido(a) num só e misterioso ato que não se explica nem conceitua, mas é claríssimo nas raras vezes em que se torna evidente.

O tal papo-cabeça!

 

“Puxa, como você é complicado!’’ Sabe quando alguma coisa fica martelando em seu ouvido a ponto de incomodar? Pois aconteceu comigo, após aquela cena, em que um amigo sentenciava o outro. O jovem, algo tímido, ouviu a terrível sentença (julgamento do outro) e não conseguiu esconder a expressão agoniada de um inocente que, por uma simples frase, torna-se culpado, errado, sei lá, só sei que era um olhar que merecia ser defendido. Como o assunto interessa a todos nós, lanço-me na defesa da sensibilidade de um jovem a quem mal conheço.
Para quem o chama de complicado, papo-cabeça e o ofende, como explicar que a complexidade é rica, significante, cheia de caminhos maravilhosos, vários dos quais bloqueados até por você mesmo, o complicado? As porteiras e os mata-burros de nossos caminhos interiores são construídos por nós mesmos.
E quem o fez, talvez esteja temendo caminhar com você pelas vias da sua criatividade interior, que o poderia confundir. É mesmo mais fácil escolher um só caminho e acreditar nele. Mais fácil e mais falso... Talvez aquela pessoa agressiva com você não esteja querendo (nem podendo) ver a força dos mundos interiores (ou as várias faces do mundo) que você tem para oferecer a quem topar a aventura de conhecer o seu próprio mundo interior. É que as pessoas preferem a vida de relação, o “conhecimento’’ externo, aos mergulhos no fundo da densidade e da complexidade humanas.
Quando alguém diz ‘’Conheço fulano como a palma da minha mão’’, na verdade quer dizer que já tem o fulano na palma da sua mão e que a relação entre eles é tão superficial que ele até pode dominar o outro. E a realidade é diversa. Quando alguém é “conhecido” por não ser “complicado”, esse alguém se fechou à criatividade interior, e o que você conhece dele é pouco, ou nada. É o que ele lhe concede. Complicação uma ova! Naquele jovem, chamado de complicado, latejava sensibilidade rica, capaz de ver e sentir os “vários caminhos do mundo”.
Leve com orgulho a sua complicação, jovem amigo. Ser complicado é passar a vida fingindo ou fazendo força para ser igual. Ser complicado, enfim, meu jovem e assustado amigo, é estar aberto para o mundo, conseguindo vê-lo sem ódio e a raiva com que se é visto por se colocar sensibilidade e amor demais onde as pessoas querem menos, seja por comodismo, cansaço ou mesmo por burrice.

 


UM FILHO RAPAGÃO A DORMIR

Lembro-me de repente de um instante no passado: um de meus filhos, então rapaz, a dormir no sofá da sala, o livro caído a seu lado. Em um filho jovem, mesmo um latagão, a dormir, aflora a criança desvalida e fraca. Some a expressão dos olhos, os significados da voz de machinho, descansam os músculos faciais que definem os traços representativos dos disfarces e defesas que inventamos para sobreviver.
Um rosto de jovem, deitado e de olhos fechados, faz cessar por instantes as intensidades e discordâncias daquele novo ser pulsátil, cheio de idéias, atitudes, pontos de vista, competições, raiva, até, da dependência de tantos anos aos pais. Há um breve retorno à desproteção da infância, que renova no pai uma forma poética e emocionada de apego aos filhos.
Raras vezes nos é permitido reter a infância dos filhos, esvaída na ânsia de descobertas e justas independências, quando eles "ajovecem". Ao contemplá-los assim, fortes mas vulneráveis, dentro de nós latejam misteriosas intensidades. Somos pedaços de complexidade ganindo ânsias de harmonia e integração. Dentro de nós lavra um afã constante, preparação do vir-a-ser. É a evolução, inevitável. Somos um esforço sem trégua para alcançar um "adiante" que engendrará novas disposições de avanço na direção do não se sabe. Somos pedaços de cansaço feliz por buscar o que, alcançado, transforma-se em plataforma de novos embarques. Somos um lindo e conturbado espetáculo de luta e jardim. Somos a natureza no esforço de existir e propagar a espécie. Somos a expressão dolorosa da ânsia de existir. Assim somos. A/penas. E vemo-nos como tal no filho rapagão a dormir.
Por isso, quando de olhos abertos, falando, pregando, querendo, clamando, postulando ou dizendo, somos um cansaço em andamento; somos o nosso doloroso miolo, busca constante de transcendência, transparência e harmonia, ideais da divindade que mora em nós, incompleta, sempre em andamento, em busca da transformação, como o universo.
Mas ver o filho a dormir ali, jovem, descuidado, grandalhão, é encontrar a criança que nele mora. E é ser pai de novo. Por certo quem me lê já viveu essa emocionada alegria antecipatória de saudades que se aproximam.


O CORPO COMO EXPRESSÃO

O que inspira esta crônica é o Carnaval com a explosão de imagens de belíssimas mulheres e seus corpos (semi)nus.
Continuamos presos ao ideal grego do corpo como expressão. Lá, havia o empenho de passar, através do corpo, a idéia do equilíbrio. O corpo seria, ele também, uma expressão do "métron", a justa medida de cada coisa, pessoa, ou sentimento.
Hoje, uma olimpíada vivida em escala mundial via televisão a cada quatro anos, ou outras competições desportivas, levam o público a uma vivência intensa de aspectos ligados a filosofias de vida que têm no corpo a expressão máxima de virtude. O corpo representa nacionalismos, doutrinas, valores em jogo no vaidoso tabuleiro político de todas as nações. O homem ainda vive estágio competitivo de sua evolução.
O corpo (bem mais que o espírito) é o elemento preponderante de toda a sociedade em que vivemos, da qual a televisão é importante janela, significativa mostra que deve ser analisada (a TV) em vez de julgada, ou, como é no Brasil, condenada, sem qualquer forma de julgamento e muito menos de análise.
O corpo está no centro das difusas e díspares concepções estéticas de nosso tempo. Nem bem, mais, pode-se falar de uma idéia do "belo em si" como o imaginava Platão, para quem o "belo" era o grande pórtico do "bem". O "belo" ajudaria a entrada no território do "bem".
O "belo" na sociedade-organização de nossos dias, filha da industrialização, escapou da noção estética do "frui" (ou seja, do prazer) e encharcou-se da noção do "utis" (ou seja, da utilidade). Vale dizer, deixou de ser objeto de fruição, adoração, contemplação, reflexão, expressões de valores, digamos, espirituais, e mudou-se para o território da utilidade. Vivemos o tempo do belo útil (será fútil?) funcional, ativo, parte externa e visão imediata e decorativa, enfeite ideológico a proclamar virtudes do sistema produtor. O corpo não é: serve para.
O belo contemplação, fruição, tentativa de beleza em si, transmuda-se no belo aplicado (logo, útil) a formas industriais, à produção (e consumo!...) em massa de bens materiais ou culturais. O artista se incorpora à produção e o seu apuro estético não mais vai para a obra isolada, e sim para a "arte-final" da peça publicitária. Não vai para a sinfonia, mas para a sonoplastia... Deixa de pertencer à obra, e passa a pertencer ao mercado.


AS MINHAS BUGIGANGAS, SALVE!

Pertenço a essa estranha espécie existente entre os mortais, que tem mania de guardar inexplicáveis coisas nas gavetas. Admiro os cidadãos de mesa limpinha, os que têm coragem de jogar fora papéis, orações no verso de santinhos, vidros velhos de homeopatia, marcadores de livros com mensagens edificantes, benjamins para alguma utilidade, fio dental, radinhos de pilha velhos.
Eu não. Acumulo-os por motivos misteriosos, pois reconheço inexistir lógica ou coerência em fazê-lo. Há algo que dói em mim ao jogar fora qualquer resultado do trabalho humano. E, na dúvida, guardo. Fios velhos, pilhas que não gastaram até o fim, clips enferrujados, um olho de boi contra a inveja e o mau olhado, um pente de osso reserva do principal que anda no bolso de trás, dois ou três comprimidos que sobraram da última vez em que tomei anti-inflamatório, alguns comprimidos de Magnésia Bisurada, uma régua velha rachada, os elásticos que recebi e não joguei fora, bloquinhos, uma prece milagrosa para Santo Antônio de Categeró, que diz: "Oh Santo Antônio de Categeró, estendei Vossas mãos agora mesmo sobre mim, livrando-me dos desastres, da inveja e de todas as obras malignas".
Lá podem ser encontrados, ademais: um caderninho com sugestões de remédios da flora que, possivelmente, nunca usarei, mas me traz segurança tê-lo por perto, mais suas maravilhas curativas: a pomada cipó azougue, a pomada Calêndula, palavra que ademais é linda e fico a repetir, Calêndula, Calêndula, e aconselha ainda o afamado colírio de cinerária marítima que, com um nome assim elegante, deve possuir formidável poder de sarar.
Salve as minhas bugigangas! Mania de reter o que me parece latejar de boas intenções, espécie de "ter poético" ao qual raramente recorro, mas do qual chego a sentir a pulsação de significados ocultos e meio mágicos. Coisa de doido, de poeta ou de velho mesmo. Ou, então, utilizo-me de minhas quinquilharias apenas para escrever uma crônica leve e não entupir o seu fim de semana com graves ou furibundas considerações, que isso não se faz.

Crônica autobiográfica
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FRASES DE ARTUR DA TÁVOLA (Crônica autobiográfica)

Meu pai era um homem triste, calado e temeroso.
Minha mãe, uma mulher valente: máximo de coragem no máximo de temor.

Sou um permanente ser em dúvida.

Não sou pronto, sou constantemente em obras internas. Sou em obras.

Ninguém perdoa um autodidata: um ser que ensina a si próprio e se descobre nos caminhos da existência. O autodidatismo marcou minha vida.

Fui obrigado a compreender para sobreviver; este processo marca a minha vida.

A bondade é um elemento que marcou minha vida.

Tenho a fé como esperança. Em minhas orações sempre peço a Deus que me ensine a morrer e que me faça partir com coragem, com a profunda compreensão de que tudo é um ciclo.