Jornal Aldrava Cultural
O Conto de Beatriz Ramos

 

Maria Beatriz Del Peloso Ramos, carioca, nasceu na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Graduada e pós-graduada em Literatura Brasileira pela Universidade Federal Fluminense. Professora de Literatura e revisora. Contista com vários prêmios e antologias publicadas. Pesquisa e estuda, continuamente, o Barroco mineiro in loco, no contexto das artes plásticas pictóricas.

Bom dia, Ismália


   A noite ronda por mim, busca-me nos cantos do apartamento escuro, aferindo-me como pessoa datada cuja validade está prestes a vencer e, neste momento de vulnerável fragilidade me configuro, apenas, num ser que mal consegue andar pelos cômodos apagados, tendo a companhia da paisagem noturna, vista da janela da sala, por onde a circunferência da baía entra e contorna meus olhos cansados de esperar. Por toda a madrugada, espero.
   Olho o mar turvo que desola, ainda mais, minha ínfima fé e sigo, mecanicamente, o movimento do vento ondeando a água negra, batendo com força na embarcação encalhada, em monumental abandono, ancorada ali, há anos, desinteressante inutilidade que me afeta todos os dias, quando atravesso a baía de barca e meu afeto toca, mesmo de longe, a carcaça de seu corpo enferrujado, desintegrando-se em pedaços soltos, caídos na correnteza. Não sei bem de quem sinto pena, mas ela me escorre pelo rosto.
   Incessante, a marola salgada continua corroendo o casco e me flagro desconfortável sobre o destino daquela barcaça doente, escombro agonizante, só esqueleto, alastrando sua dor, enquanto o motor fraco de um pesqueiro quebra o silêncio da maré prateada, para receber o pretenso milagre dos peixes, abundância doada pelo luar, clareando este sonho que nunca acontece, porque ligeiros, os peixes fogem, alcançam o refugo das ilhotas oleosas dos estaleiros, lugar das plataformas congestionadas de rebocadores e guindastes erguidos, metálicos que se elevam alto, guinchando o céu, perfurando profundezas. Divago sobre peixes, perguntando-me se ainda terão o furta-cor em suas escamas ou somente visgo de gotas lodosas, faria diferença?
   Do outro lado da baía, luzes fervilham em pontos luminosos, concentrados no cais do porto, envolto por fios brilhantes que desenham a forma dos navios ali atracados, transatlânticos competindo em brilho e altura com os quilômetros iluminados da ponte que corta o espaço aberto da noite e lança seu vão central sobre o mar partindo-o, com seu arco de luz, em dois lados, separando margens de cidades, dividindo, há muito, minha vida em horas de paciente tormento, quando a espera toma conta de mim, atropela meu raciocínio com o rosto de quem precisa chegar, mas demora uma eternidade. E de quantos minutos mais preciso para exceder minha eternidade?
   Disfarço a preocupação, diluo a ansiedade inadiável pulsando nos ponteiros que escapam velozes do relógio, hospedeiro preferencial do meu sofrimento, e focalizo o tempo daquelas pessoas em escala, embarcadas em cidades flutuantes, atravessando demoradamente o mundo; comparo-as comigo, sozinha, imersa na aflição, frente aos perigos do mar que me joga à deriva, no meio do oceano de minha casa, sem bússola, nem estrelas. Agora, meus pensamentos quase me afogam.
Porque nado com esforço, sem enxergar a linha racional que me oriente rumo a um norte e continuo dando braçadas desnorteadas, tentando manter-me de pé, dentro d’água, mas afundo tantas vezes, perco o fôlego, sabendo que meu nadar é limitado e cíclico, em torno de mim, na baía circular da minha recorrente obsessão, todas as vezes que vivo a agonia da espera: esta vertiginosa sensação líquida de naufrágio.
   E só, o isolamento amplia minha precária expectativa. Da janela alta do edifício, meu olhar solidariza-se com as águas, cercadas de luar, e antevê por quantas solidões terei que passar ainda, acordada, insone, esperando ou descrendo nesta noite, em que a lua grande, como uma gôndola branca navegando no mar do céu, me favorece, gentilmente, ao trazer os versos da enlouquecida Ismália, presa na torre, com seu corpo e alma enclausurados. Relembro Ismália na imagem muda da lua marítima e molhada.
   Nas alturas, como ela, vejo a mesma lua no céu, outra refletida na água, soluçante duplicação lunar, chamando a prisioneira para libertar-se de seu sonho poético quando, iludida pelo desejo de alcançar duas luas, mergulha no vôo noturno definitivo, feito de coragem fluídica pela pobre mulher, mais alma que corpo, jogando-se ao mar, à procura da libertação salvífica. É a natureza pânica me oferecendo, com urgência, o alívio da poesia para eu agüentar a espera.
   Deixo Ismália dormir no fundo do mar, consigo forças para emergir do meu devaneio, subo à tona, seco a água do meu pequeno horizonte e alargo o olhar para além dos limites da baía, onde acima do mar, elevam-se contornos altos e pesados, repousando na escuridão; contemplo as silhuetas dos morros da serra esculpida na pedra, de faces pontiagudas em agulhas, por onde atinjo as montanhas que me conduzem, pela recordação e obsequiosa mercê, à terra onde nasci. Piso duro e entro na minha visita ancestral.
   Para lá, não levo meu relógio de pulso; defronto-me com o antigo pendurado na parede, voltando o tempo, para receber as mulheres que sou, cheia de séculos de idade e, como legítima herdeira, carrego todas comigo, multiplicadas iguais, respondendo com os mesmos gestos, o olhar baixo no chão, cumpridoras da penosa sina, serviçais pacientes da vocação de esperar. Desde outrora, sucessivamente destinadas.
   Elas, hospedadas em mim, corpos emudecidos e espíritos contritos, falam-me, sobre o padecimento da espera, no agüentando dos anos, certas de que, todo esperar, mesmo custoso, traz uma lasca de esperança, buscada como minério valioso, pedaço de devotamento escavado na terra, em demorada lida, vindo em estado bruto. Mostram-me que a espera é mineral e por isso, essas mulheres cavadeiras abriram o solo, cavaram fundo, reviraram a canga de rocha do chão ferrífero, procurando, com o lume frouxo da lamparina, o mineral escondido, até vê-lo aflorar do escuro e cravar nos corações forte dor, sempre que o tempo era de espera, este ferro moldando a alma. Assim ensinaram, assim cavei.
   As lâmpadas da cidade começam a apagar seu brilho difuso com o nascer do dia, quando todos os reinos dormem ainda, num repouso de gema preciosa, dádiva enraizada no leito do sonho. Entrego ao meu ser híbrido, metade sentimento, outra minério, a tarefa de encerrar a vigília, eu, a mais concreta sentinela talhada na pedra, imune ao sono, sinto-me garimpada nas entranhas e por fim, sobra-me, apenas, misturada ao resíduo devastado de terra e cascalho, a reluzente certeza, fagulhando em minha cabeça, de que seres e coisas têm um tempo certo e, em breve, tudo acaba. O esperar também. Cessa sofrido, finda agudo.
   O dia começa com o céu unido ao mar, num só amanhecer. Novo ritual brilhante levanta a manhã e funde céu e mar numa esfera cromática exuberante, explodindo em claridade quente, na mesma hora em que a embarcação encalhada acorda e espalha sua cor enferrujada pelo mar, ladrilhando as águas da baía, refletidas na abóbada celeste raiada de todos os ferrosos tons. No grandioso espelho do céu, vejo Ismália ressurgir viva e quente, transfigurada pela luminosidade do sol envolvendo seu corpo banhado em cores e salva pela dupla visão da aurora.
   Escuto o barulho da chave abrindo a porta e, quem deveria chegar, entra em casa trazendo feixes de luz.