Prêmios:
1º lugar no Concurso Nacional de Contos do 44º FEMUP - Paranavaí,
PR, novembro de 2009, com o conto: Seus 25 anos.
Menção Honrosa no 4º CECON - Ipatinga: CLESI, 2004,
com o conto Flora. Menção Honrosa no 5º
Concurso estadual de Contos. Ipatinga: CLESI, 2005, com o conto Amanhã,
hoje, ontem! Menção Honrosa no Prêmio Nacional
de Contos Guemanisse, Rio de Janeiro, 2007, com o conto A Bibliotecária.
4º colocada no 43º FEMUP - Paranavaí - PR, 2008 com
o conto Seus perdidos, meus achados.
SEUS
25 ANOS
Ainda lembro dos seus primeiros passos: indecisos, trôpegos, corpo
desequilibrando, e eu com os braços estendidos estimulando-a
a continuar. Um sorriso inocente nos pequenos lábios rosados,
pele amorenada, olhos negros e cabelos lisos. Era uma miniatura de gente,
uma boneca tentando equilibrar-se para dar os primeiros passos. Chorava
pouco e quando eu retornava no final da tarde do trabalho, cansado,
estressado e algumas vezes muito aborrecido, abria a porta silenciosamente
para não fazer barulho e meus olhos brilhavam ao vê-la
sentada no tapete com as pernas cruzadas; algumas bonecas espalhadas
pelo chão, suas mãozinhas ocupadas com pequenos brinquedos,
despreocupada como se nada mais existisse naquele momento. E não
existia mesmo... Eu pairado com a cabeça encostada no alizar
da porta, deslumbrado com a cena que me acalentava. As linhas de expressão
logo se suavizavam e os olhos brilhavam, dizia Maria. Perdi a conta
de quantas vezes fiquei pairado, estático à porta, querendo
imortalizar aquela imagem. A pasta pesada, às vezes, caía
sem querer de minha mão e dispersava sua concentração
e estado mágico em seu mundo de criança. Logo largava
todos os brinquedos e ia engatinhando ao meu encontro. Eu dava apenas
dois passos curtos, pois sabia que gostava de me receber na entrada
da porta. Sua mãe esperava pacientemente minha disposição
e felicidade retornando. Sentava no chão com você e brincávamos
com os minúsculos brinquedos até seus olhos cerrarem vencidos
pelo sono.
No primeiro dia de aula não consegui conter o impulso de sair
do outro lado da cidade e levá-la pessoalmente à escola.
A merendeira rosa nas mãos pequeninas, a mochila pendurada nas
costas, vestida de uniforme azul e branco do colégio, cabelo
preso com duas marias chiquinhas cor de rosa. Estava crescendo... Não
dei a honra a sua mãe de levá-la no primeiro dia. Era
importante vê-la entrando com segurança na sala de aula
e eu recomendando à professora que tivesse mil e um cuidados,
por que era uma criança dócil, muito frágil e tímida.
Devo ter repetido umas sete vezes o número do meu telefone, caso
fosse necessário contactar-me.
Os outros dias me contentava em buscá-la, quando não ficava
até tarde no escritório. Você adorava me ver caminhando
pacientemente pelo pátio da escola. Corria euforicamente ao meu
encontro e contava de um fôlego só como foram às
aulas, os trabalhos e as brincadeiras. Quase tive um ataque do coração,
quando saíamos tranquilamente da escola, você perguntou-me
repentinamente:
- Pai? Como se faz um bebê? De onde eles vêm?
Sabia que despertaria para esses tipos de perguntas, mas não
esperava que fosse prematuramente. Maria ria de meu pudor excessivo,
falando que as perguntas se tornariam mais constrangedoras com o tempo.
Eu fechava os olhos e passava as mãos sobre a cabeça,
preocupado.
- Pai? O que é sexo?
- Pai, por que a terra é redonda e meu quarto é quadrado?
- Pai, quem inventou Deus? A professora disse que quem inventou o mundo
foi Deus, então quem inventou ele?
Essas interrogativas aos cinco anos, e eu embasbacado no meio do caminho,
retornando da escola para casa com você. As perguntas aumentavam,
os níveis também e eu tentando dar um caráter romântico
a tudo. Sua mãe me reprovava com veemência. Os anos foram
passando; eu e sua mãe, mais velhos e cansados. Você já
não queria que eu a buscasse na escola.
- Não precisa pai. Venho caminhando com minhas colegas.
Estava ficando independente e não precisava tanto de mim.
Os quinze anos vieram e a festa de debutante também. Foi uma
belíssima noite: vestido rosa, cabelos soltos, coroa na cabeça,
dançando com suas colegas no meio do salão. Estava virando
uma moça. O tempo correu como um filme em projeção
acelerada, e eu só queria que fosse mais devagar, um pouco mais
devagar e nunca tivesse que acordar daquele sonho. Depois da valsa,
um guri ensimesmado e estranho, pegou-a dos meus braços. O jeito
que olhou-a me fez recordar das minhas primeiras investidas amorosas
e entrei num inferno astral.
- Será que Flora já beijou alguma vez, Maria?
Sua mãe olhou-me como se eu estivesse proferindo a pergunta mais
absurda e fora de moda do mundo:
- O que está acontecendo com você, José? É
uma adolescente despontando para a vida. É óbvio que já
beijou. Sabia que ano retrasado menstruou?
Lembro desses momentos somente nos sonhos. Foram especiais e não
retornam. Um dia sem repetição, uma chance para cada etapa
da vida. Compreendi? Se eu compreendi? Tive que tentar compreender para
não sofrer ao extremo.
- Nossa filha é uma mulher agora, Zé! Entrou para universidade!
Veio a primeira notícia que comemoramos com muito orgulho.
- Está namorando com fulano, Zé!
- Está namorando com beltrano, Zé!
- Hoje não dorme em casa, Zé!
- Compreenda sua filha, Zé! Não é mais uma criança.
- Ficará uma semana fora... Ficará um mês...
- Vai para o exterior...
E eu suportando, por que sabia que minha menina voltaria para casa,
para o quarto cor de rosa, com a prateleira repleta de bonecas e muitos
brinquedos intactos que comprei ao longo dos anos. Voltaria para os
meus sonhos, entraria pela porta gritando:
- Pai, mãe, cheguei!
Contaria tudo de um fôlego só, depois Maria faria um jantar
especial com direito a sobremesa e eu contaria uma história.
Era seu pedido quando ficava muito tempo fora de casa. Estava quase
se formando: medicina, e esse era o meu maior trunfo e orgulho. Estufava
o peito, quando meus amigos perguntavam o que minha filha estava fazendo.
- Quase médica!
Quando vi um rapaz alto, entrando em casa e você me apresentando
como seu namorado, tomei o mesmo susto quando perguntou-me como eram
feitos os bebês.
- Esse não é aquele guri da festa de seus quinze anos,
Flora? Perguntei de cenho cerrado.
- É pai, o mesmo!
Apertei a mão do rapaz mais do que deveria e fiquei olhando-o
por um tempo, até escutar a voz de Maria:
- Zé? Solta a mão dele!
- Hã? Desculpe...
- Não foi nada...
Saí da sala e fui para o quarto emburrado e de lá gritei:
- Hoje não vou jantar! Tenham um bom apetite, estou com dores
no estômago...
Maria balançou a cabeça, reprovando minha atitude infantil.
Relembro do meu ciúme de pai com certa graça e humor.
Sabia que esse momento chegaria, fazia parte da vida como a morte fazia
parte do ciclo. Se pudesse voltaria o tempo... Se pudesse... Mas o tempo
é incorruptível, não tem volta e as coisas são
irreversíveis.
Ajeito a gravata no espelho, enxugo as lágrimas que teimosamente
insistem em despencar dos olhos, ajeito o paletó e escuto uma
batidinha com três toques familiares me despertando.
- Pai? Está na hora...
- Está linda, minha filha.
Abro a porta do carro para ela entrar. Tomo a direção
e no trajeto espio no retrovisor seu semblante, feliz e deslumbrante.
Foi tão rápido... Muito rápido... Pego-a pelas
mãos, subo as escadas de braços dados para conduzi-la
até o altar. Antes de escutar os primeiros acordes da marcha
nupcial, acordo com o barulho estridente do despertador e pego seu retrato
amarelado e desbotado no criado-mudo: um bebê de um ano. Maria
não acordou. Estava meio surda e tomava continuamente muitos
remédios, inclusive para dormir, o sono era pesado e sem sonhos.
Não reprovava Maria. O rosto e os olhos estavam sem vida há
mais de duas décadas. Eu não teria que trabalhar, completei
sessenta e nove anos, Flora, e nem parece que o tempo passou tão
depressa. Até hoje sonho como teria sido sua infância e
mocidade. Sua vida... Faz vinte e cinco anos... Vinte e cinco anos que
você morreu e hoje é parte dos meus sonhos. A cada dia
tento compreender as coisas irreversíveis da vida. Tento compreender...
Tento...
Seus
perdidos, meus achados.
Dora
estava muito cansada, definitivamente esgotada. Os meses anteriores
não tinham sido fáceis. Trazia o coração
em ritmo acelerado; o sono triplicado pelas inúmeras noites em
claro. Despejar lágrimas era cansativo. Escutar o barulho de
vozes exigia o resto das energias poupadas. O burburinho cada vez mais
longe, cenas lentas e o cheiro de vela queimando, penetrava suas narinas
sem cor e dilatadas. Sentia o cheiro mais pelo barulho das chamas trepidando
silenciosamente no castiçal de prata embaçado. Alguém
não tinha feito o serviço direito. Não tiraram
as últimas ceras que criavam uma crosta espessa e fedorenta.
Fumaça acinzentada. O vôo da mosca imperceptível
com barulho misturado às vozes de pessoas que não revezavam
nem em uma ínfima virada de segundo. Dora sentia o vôo
das pontas de asas das moscas batendo. Um chocalho familiar de pulseira...
Cheiro de perfume abafando o fedor de vela queimada. Alguns dias antes
a chuva respingava com violência lá fora, gotas grossas
batiam no chão. A luz teimava em apagar enquanto o pai cantarolava
uma música para ela. O quarto era constantemente limpo. Nas crises
de falta de ar, o balão de oxigênio, um dos poucos equipamentos,
pois era o único meio de chegar ar até os pulmões.
Um suplício para ela e para o pai. Vivia com o coração
sobressaltado diante das crises. O pulmão estava debilitado demais.
Depois que a crise passava, ele sentava no chão da sala e chorava
copiosamente: - quase a perdi! Falava baixinho. Foram inúmeras
crises. A mãe tinha assistido a algumas e a calma que emanava
de seu ser a chocava. Lembrou de um momento em que acabara de ter a
crise mais forte de sua vida e ela acabara de chegar. As mãos
entrelaçaram-se as de Dora e beijou-a carinhosamente no rosto
e disse algo que não conseguiu escutar. Da fresta da porta viu
o sorriso triste no rosto do pai. A campainha tocou estridentemente.
Olhou o relógio no alto da parede do quarto e já passava
das três e meia da manhã. O corpo não respirava
mais. As lembranças teimavam em penetrar os pensamentos. A caixinha
com seus perdidos... Fizera questão em perdê-los para morrer
junto com as feridas. Dora nunca negou que o pai fosse a pessoa mais
amorosa e doce que conhecera em toda sua vida. Não, isto jamais
negaria. A bondade e o caráter dele foram imutáveis a
tal ponto de cerrar suas cicatrizes que subitamente insistiam em abrir
e sangrar. Feridas que nunca fecharam. Olhava o semblante angelical
do pai, pairado, estático com as mãos sobre o caixão.
O pai foi um anjo, tranqüilo, paciente, meigo, sofrido e de uma
bondade que chegava a doer nela tamanha generosidade. Sempre entendia,
aceitava e repetia: - Mais cedo, ou mais tarde, filha. Estas frases
às vezes mais a irritavam. A complacência chocava. Não
era possível uma pessoa ter tanta explicação para
coisas inexplicáveis ou óbvias. Mamãe nunca nos
amou e nos aceitou, foi rejeição a partir do momento que
sentiu os sentimentos dos outros, pensou Dora. Era triste perceber como
nunca amara seu pai, nunca o amara de verdade.
Alguns anos Dora fora tomada de uma
doença grave acometida por febre alta, urina escura, mal estar
e dores musculares. Com tempo os sintomas foram progredindo por uma
coloração amarelo-dourada da pele e conjuntivas. De quarentena
em casa. Hepatite. A comida, o prato, todos os cuidados e carinhos eram
repassados pelo tratamento cuidadoso e preocupado do pai. As noites
em que Dora quase padecera de dores e altíssimas temperaturas,
os pedaços de pano embebidos em álcool repousavam nas
partes do corpo.
-
Cadê mãe, pai? Variava. Hoje ela volta pra casa?
-
Volta Dora. Hoje ela volta...
-
Que horas?
-
Mais cedo ou mais tarde...
O sono invadia as crises de Dora pelo
cansaço e os olhos só abriam no dia seguinte sob o olhar
trôpego e desfocado da mãe. Semblante enrugado, cabelos
desgrenhados e um palmo sem cor. Dora olhava para ela sem entender a
frieza que emanava de seu ser. Sentia e sofria sob o olhar perdido em
algum ponto invisível e um monossílabo da mãe:
- Bem? Mal tinha tempo em balbuciar uma palavra e a florzinha do mato
era repousada sobre a cama ainda com cheiro de mato e terra. Um pedido
de desculpas? Ora, ela nunca tinha tentado ou se desculpado pelas ausências
e falta de afeto. Quando aparecia estava com ressaca visível
ou com dor de cabeça. O que mais doía em Dora era o olhar
distante. Afago ou toque sutil bastavam os do pai. O costumeiro e amoroso
olhar dele, guardado. A mãe tinha quitado o afeto pela maternidade.
Só serviu para segurá-la a duração de uma
gestação, depois não se lembrava mais, estava perdido.
A florzinha abria as feridas da falta do carinho da mãe. Mirar
a flor era sofrível demais. Inúmeras foram repousadas
em seu leito e nunca entendera o sentido delas. Recusava-se. Esquecia
as flores em qualquer canto do quarto, que com o tempo se perdiam no
esquecimento, no relaxamento de querer matar a dor do desprezo. Foram
inúmeras e incontáveis perdidas em algum canto da casa.
A brisa do vento talvez as levassem ou o pai varresse o que sobrara
delas no dia seguinte... Ou a decrepitude do tempo. Pouco importava
para ela. Era previsível: mais dia ou menos dia, como dizia ele,
viria e deixaria uma flor. Sumiria nas próximas semanas ou meses
com algum homem, e o pai de Dora sempre esperaria o retorno, o arrependimento,
a mudança. Ele sempre esperou, apostou uma vida nisto e mais
triste para ela foi perceber a esperança até o último
instante, no gesto inesperado: uma caixinha de veludo com a insígnia:
seus perdidos e meus achados.
Dora acompanhava astutamente o barulho
das pedras da pulseira se chocalhando e o cheiro de fragrância
barata. Ela estava lá... Lembrou das palavras do pai e sua voz
latejando nos ouvidos: - Ela sempre virá, minha filha! Segurou
com mais força o choro que insistentemente teimava em despencar
pelo rosto. As palavras do pai aumentavam sua solidão. Estava
sozinho e abandonado. Mais cedo ou mais tarde: ela virá. Esta
frase era conhecida e repetida inúmeras vezes por ele. Fazia
questão de perdê-la. Entrava pelo ouvido esquerdo e saía
pelo direito. Lamentava... Ela lamentava tanto. O cabelo totalmente
descolorido e amarrado em uma fita vermelha. O rosto mais enrugado que
de costume. As roupas amassadas e encardidas, as unhas comidas e com
resto de esmalte velho. Ela era o foco de Dora. O barulho da mosca bailando
no recinto e o cheiro de vela queimando não incomodavam mais.
Semblante sisudo, olhos vermelhos e inchados. Remorso? Só poderia
ser. Dora percebeu sentimento no rosto da mãe. A figura também
se encolheu coberta em um xale de tricô preto que tapava todas
as partes das costas. O osso estava apontando no tecido de lã.
Estava debilmente desamparada e triste. Apagada. Pela primeira vez,
Dora viu a mãe se apagar no meio das pessoas. Sombria e triste.
Velha e cansada. Poucas vezes vira o rosto em harmonia. Raríssimas
vezes que até se esquecera. Fizera questão de desprezar
o retrato sobre a mesinha no canto da sala. Três figuras sobrepostas
num fundo azul e verde. Três figuras abraçadas e felizes.
Esta foto não combinava com os sumiços dela. A tristeza
do pai e a carência de Dora. Doía olhar o retrato com a
cena que não representava mais. Num ato repentino de revolta
cortou o rosto da mãe do retrato. Jogara em algum canto da sala.
Estava perdido ou foi varrido pelo vento ou pelas cerdas da vassoura
junto com os ciscos. Perdera. Fizera questão. Fazia questão
de esquecer as pontas que abriam as feridas. Abandonava-as em qualquer
canto. Perdia-as em um lugar qualquer. Esquecia a existência delas,
ou quando lembrava não tinha mais a prova da dor. O pai sempre
entendera, inquestionavelmente compreendera e aceitava a atitude. As
pontas da pulseira batendo na beirada do caixão chamou a atenção
dela. Perdida em pensamentos que insistentemente fizera questão
em apagar de sua vida. O chocalho da pulseira no caixão e as
mãos acariciando seu rosto sem vida seguido de um choro muito
triste. A mãe era uma incógnita. Desconhecida e estranha.
Os perdidos guardados em uma caixinha de veludo pelo pai, pouco antes
do falecimento colocado no guarda-roupa com a inscrição:
seus perdidos e meus achados. Aquela caixinha tinha a passagem mais
doce e feliz de sua vida familiar. As florzinhas do mato, o retrato
constituído da família, os retratos da mãe carregando-a
no colo, todos perdidos por Dora: achados e guardados por ele. Com gesto
repentino, mas conhecido por ela, a mãe repousou sobre as mãos
de Dora a florzinha do mato com cheiro de terra e mato molhados. Antes
de fecharem a tampa do caixão lançou um olhar demorado
sobre a figura estática da filha. Com o corpo sustentado por
duas mulheres na procissão até o cemitério, o pai
de Dora chorava convulsivamente e sua mãe caminhava silenciosamente
atrás. O buraco fundo e pequeno engolia o caixão, a música
antes da despedida aumentou os soluços e choro do pai: “fica
sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas, nas
mãos que sabem ser generosas”... A mãe jogou uma
rosa sobre o caixão antes de ele afundar na terra.
- Mais cedo ou mais tarde, querida...
Ela volta, não se preocupe minha filha. Ela sempre virá...
Lembrou das palavras do pai. Dora foi tomada de um sentimento novo pelas
imagens achadas e guardadas por ele e foi em paz com as flores repousadas
sobre o seu corpo.
Amanhã, hoje ontem!
Da
janela do apartamento eu espiava a vida lá fora. Era noite clara
de lua minguante pendurada caoticamente no céu. Uma estrela lá
outra acolá. Não ventava, não chovia nem fazia
calor. Um extremo mal gosto do tempo. A maioria das luzes dos postes
da rua estavam queimadas. Eu do alto do décimo quinto andar vigiava
a rua avidamente; outros apartamentos, casas, cabines de telefone pichadas,
janelas de outros apartamentos. Alguns estavam como eu, parado olhando
tudo e nada, outros vestiam o uniforme doméstico, outros com
o corpo jogado no sofá assistindo ao noticiário da TV.
Não me dava o desatino de ligar a televisão e escutar
a mesma ladainha de sempre; tudo era cópia da cópia, da
cópia, da cópia de ontem! Às vezes fincava noite
adentro a encarar a rua pela janela do apartamento e afogava em pensamentos
estranhos, ou filosóficos? Será que estava ali mesmo?
Eu era eu, ou era outro? Dentro daquela gaiola de loucos, sem sentido.
De manhã levantava de sobressalto com o barulho tormentoso do
despertador. Calçava meus chinelos e ia até o banheiro
enfrentar minha carranca no espelho amassada pelas listras em alto relevo
do travesseiro. As escovas estavam estáticas no copo de alumínio,
encardidas de lodo. Duas escovas? Isso não tinha muito sentido.
Elas só dependiam de mim para sua existência banal. O estômago
contorcia com o gosto de flúor da pasta dental ressecada devido
a úlcera não cuidada. Meu desjejum matutino: meia lata
de coca-cola misturada com pó de café; um cigarro de maconha
e a pílula da felicidade: 180 mg de fluoxetina. Trocar de roupa,
qualquer uma serve, pegar a maleta e sair do apartamento. Mais uma vez
o martelo no cérebro: pra que mesmo trocar de roupa? Num flash
a resposta vinha à tona: para não ficar sujo; mas não
estava sujo; para quê? Pra nada? Não! As pessoas trocam
de roupa sempre! Tomam banho, trocam de roupa! Vão sair trocam
de roupa! Vão trabalhar trocam de roupa! As roupas estão
sujas? Trocam de roupa, aí tudo bem! Mas se estão limpas
trocam de roupa também!? Tem sentido? Sim, por que isso é
a convenção! Isso me causava pânico, tédio,
raiva, angústia, revolta, ódio... Sei lá, pouco
importa!
O bafo do vento soprou intrometido no rosto ressecado;
os cabelos não mexeram engomados de poeira e gel; diabo com o
sopro do vento! Não gostava do vento, do sol, do nascer nem do
pôr-do-sol, da noite, da madrugada. Das pessoas andando na rua,
às vezes, encostando em mim com seus corpos desastrados, uma
trombada aqui outra desculpa ali. Ou um tanto pior quando me dirigiam
um bom dia! Não olhava para as pessoas, estava farto da existência
delas. Eram úlceras pro meu estômago queimado.
Os passos eram trêmulos pelo quarteirão.
Dois longos quarteirões, até entrar num outro prédio.
O elevador me enjoava o estômago, a cabeça, o corpo, a
cara. As pessoas dentro dele me faziam pensar na imbecilidade de cada
um que estava ali. Inclusive a minha, a nossa , a de todo ser humano
com senso mínimo de raciocínio. O barulho da porta do
elevador se abrindo, o porteiro anunciou o andar me acordando da excentricidade.
Saí de má vontade do elevador vazio e me dirigi à
sala com a placa : Psiquiatria e Terapia.
O ar da sala acometido por ar condicionado e incenso
de flores que espantava maus fluidos. O som que entrou nos meus ouvidos
lembrava clássicos que acalmavam os nervos. Nos meus não
acalmavam, só irritavam, pois não suportava escutá-los
mais! Música para os pacientes... Sem querer soltei um bocejo,
um sorriso amarelo e finalmente um gemido enfastiado. Parei no limiar
da porta, não entrei nem saí... Cocei a cabeça,
forcei os olhos para a sala cheia de pessoas distribuídas uma
a uma pelas cadeiras estofadas e confortáveis. A secretária
no centro completando o cenário insensato do inexplicável
olhava para mim com olhos forçados, certamente treinados, pois
escondiam qualquer sentimento que viesse à tona em um ser humano
que era cópia da cópia, da cópia, da cópia,
da cópia... Levantou da cadeira como em câmera lenta, tudo
estudado, calculado, treinado como ontem, anteontem, antes de anteontem,
diversos anteontens, há uma década! Abriu a porta, levantou
as sobrancelhas com ar de cinismo e um sorriso amável no rosto;
delicadamente entrei na sala titulada: doutor...
Tudo em ordem... Fui para trás da escrivaninha,
sentei na cadeira giratória, peguei as fichas dos novos pacientes
com problemas velhos sem interesse, olhei para o relógio, mesma
hora ontem, hoje e amanhã ... Amanhã?! Amanhã nunca
será, porque quando chegar vai ser hoje! Tudo cópia da
cópia, da cópia da cópia, da cópia da cópia...
A Bibliotecária
Os livros estavam devidamente enfileirados nas estantes.
Poucos centímetros de distância um do outro. Nenhum torto,
fora de foco. As orelhas desamassadas, passadas com chapa de ferro morno.
O cuidado era devidamente dado para cada um, sem discriminação.
O cheiro da sala, papel. O lugar pouco iluminado, embora o requeresse.
Na mesa, ao fundo, uma figura vergada e escondida na pilha de livros
para carimbar. Idade avançada. Cabelos cor de prata. Rugas rasgavam
ponta a ponta o rosto descorado. Uma vida inteira de cultura, diversão,
viagens, um pouco de tudo mostrado pelas palavras imprensas nas páginas
dos livros. Clarice estava pouco a aposentar. A preocupação
acometia seus últimos dias com a idéia. Quem iria cuidar
deles? Os sonhos lhe roubavam o sono; os olhos mais fundos. Os livros,
sua vida, arremessados no lixão da cidade. Livros velhos? Antigos
e restaurados; relíquias. Nas manhãs a cabeça queria
explodir e quase Clarice perdera a hora de trabalhar. A biblioteca da
escola não funcionava sem ela. Não abriam. Ninguém
sabia mexer com carinho nos livros. Não encontravam a essência
da pesquisa. Também só ela dera conta até hoje
de livro por livro. As capas que fazia para os que estragavam tiravam
exclamações de incredulidade. Ficavam perplexos. Era muito
especial. Qualquer pesquisa Clarice dava conta. Ia sempre além,
explicava com precisão todos os detalhes. Sabia um pouco de tudo.
Com a sacola pesada de livros restaurados entrava diariamente na biblioteca
cruzando a mão direita no rosto, rezava pai-nosso e ave-maria.
Uma vida dedicada somente ao trabalho e nada mais. Clarice morava três
quarteirões da escola. Casa modesta, herdada. A outra única
coisa que fizera foi cuidar de sua mãe – morta havia uma
década. Cuidado devido de filha exemplar, solteirona e única.
Dividia parte de suas horas ora com a mãe, ora com os livros.
Dona Gertrudes morrera numa manhã cinzenta de sexta-feira treze.
Clarice tinha pavor destes dias, mesmo sabendo que era lenda. O sossego,
a paz e o sorriso meigo que sempre faziam parte do seu perfil ficavam
tensos. Mas ninguém percebia. A bibliotecária, pessoa
muito estimada, querida por todos. Falavam que nem pecado tinha. Nunca
arrumara um namoro. Era santa. Diziam que quando a boa dona donzela
morresse iria direto para o céu. Em quase trinta anos, Clarice
nunca dera uma má resposta, uma palavra feia, nenhum olhar meio
torto. Mas o sonho mexia com sua rotina. Seria aviso de morte repentina?
Os dias estavam findando para ela? Livros no lixão da cidade!
No livro de sonhos consistia informação de algo novo na
vida. Para Clarice, novo seria o fim. Deus dar cabo na vida atribulada
e solitária. Ponto final. Tudo investido em quatro paredes infestadas
de livros. Histórias, informações, um mundo, o
segredo da vida impressos nas páginas. A sensação,
a mesma de ter vivido com emoção detalhes, aventuras,
desventuras... As paixões atingiam um mundo desconhecido para
ela. Não abria estas páginas. As mãos iam vez ou
outra em contramão com a cabeça. Rezava vários
padre-nossos e pedia logo perdão. Mesmo com os livros não
recomendados, tinha obrigação de conservá-los.
Não discriminava nenhum. Apenas deixava-os de lado. Um outro
gosto que não combinava com uma vida afastada dos desejos e maldades
da carne. Mundo desconhecido. Um fim de expediente como outro qualquer.
Um dia cinzento. Frio. Clarice limpou o último livro. Fechara
com cuidado as janelas pesadas de madeira. Antes de sair, mais uma olhada.
Uma olhada demorada, apaixonada, precisa. Os livros estavam cada um
no seu lugar. Limpos, conservados. Devidamente enfileirados. Alguns
estavam sobre a mesa. Estragados, mal conservados. Daria um jeito. Clarice
dirigiu-se à mesa. Pensou em juntá-los e levá-los
para casa. Antes de dormir teria tempo para arrumar uns três.
Pela primeira vez o cansaço venceu. Estava ficando mesmo velha.
Tinha que aposentar. Uma dor de cabeça, corpo ruim. Com a idade,
a gripe costumava visitá-la mais vezes no ano. E este frio piorava
tudo. Em casa tomaria um chá quente. O resfriado iria embora.
Ainda com os olhos sobre a mesa de livros, Clarice pensava. Não
viu quando um rapaz chegou e ficou olhando para ela. Alheia ao tempo
e tudo. Voltou quando escutou um pigarro. Pela primeira vez, corou.
Será que o rapaz pensaria que estava esclerosada? Falava sozinha?
De vez em quando fazia isto. Costume de vida solitária. Ela,
só na sua companhia. Mas, daí? Nunca importava. Não
ligava. Ajeitou a postura, prontificou-se. O rapaz, viajante. Hoje iria
demorar. O mal estar ficaria para depois. Certamente ele mostraria catálogos
e mais catálogos de livros. Compra de livros. Esquecera por completo.
O rapaz da editora sentou. Com os olhos puxados e enigmáticos
abriu os catálogos. Mãos grandes e unhas bem aparadas.
As mãos do rapaz. Clarice imaginou como seria o toque delas.
Chegou a esbarrar sua mão. Desconfiou estar com febre. O danado
do resfriado desestruturou tudo. O rapaz falava. Voz macia. Dentes brancos.
Lábios bem desenhados. Clarice não escutava. Olhava para
o rosto dele. Enfeitiçada. Como seria beijar aqueles lábios?
O viajante perguntou algo, não respondeu. Não o ouvira.
As mãos dele falavam. Tudo que queria era sentir o toque macio
das mãos no rosto pálido. Aquelas mãos esquentariam
a pele até torná-la corada, sadia. Uma vontade quase incontrolável.
Clarice pensou aterrorizada ter pedido ao viajante para acariciar-lhe
o rosto. Um toque apenas, por favor. Fechou os olhos. Sentiu o calor
das mãos do rapaz. Aquecida. Estava mesmo carente. Esqueceu de
oferecer um chá para o viajante. A bibliotecária educada,
contida, estava ficando lerda. Velha. O rapaz novamente perguntou. Voz
grave, hálito cheiroso. Cheiro de menta. Um sorriso separou seus
lábios. Clarice despertou dos pensamentos. Pediu desculpas. A
explicação, pouco convincente, o cansaço, a gripe
prestes a sair do corpo. O viajante sorriu. Os olhos também sorriram.
Separou catálogos. Entregou um a um. Rosou as mãos. Olhou
profundamente para ela. Chegou próximo. Mais alto que parecia.
Mais bonito. Muito próximo. Clarice chegou a pensar que o viajante
iria beijá-la. Fechou os olhos imaginando a cena. Nunca sentira
um roçar de lábios e o gosto de uma boca que não
fosse a sua. Delicadamente as mãos do viajante passaram pelo
rosto dela. Uma fração de segundos. Uma vida inteira,
só. Um dia, um desejo. Toque como imaginara: suave, quente, delicado,
gostoso... Uma última olhada apaixonada nos livros e com a chave
passou a tranca na porta da biblioteca.
O Passageiro
Meu
sonho era ser maquinista de trem. Desde criança ia para a estação
de Santa Bárbara e ficava a namorar o cenário de trens,
de passageiros, das malas... Acordava antes do sol raiar muitas vezes
para encontrar o trem que vinha de cidades vizinhas trazendo passageiros.
Mamãe quando descobriu minha obsessão por trens, incentivou-me
a colar no pé de seu Amâncio. Homem mais velho, carrancudo,
esquisito, trabalhou em todos os setores da estação do
trem. Fora engraxate, vendedor de balas, salgados pipocas; depois trabalhou
no guichê vendendo passagens, foi vigilante, trocador, maquinista
e agora era o manda-chuva dos homens que trabalhavam na estação.
Na parede de sua sala pendiam vários retratos espalhados de homens
que trabalharam na ferrovia. Era coleção de seu Amâncio.
Chamavam de galeria dos ferroviários mortos. Disse um dia para
mim que logo sua foto estaria pendurada naquela parede. Olhei para ele
assustado e não entendi nada, também nem queria entender,
só queria uma boca na estação.
Um dia tomei coragem de homem e conversei com seu
Amâncio sobre meu sonho:
- Senhor Amâncio! Sabe que quando crescer gostaria de ser como
o senhor? Homem importante e sabido?!
- Zé, vê se isso lá é coisa de futuro para
você, moleque! Vá estudar menino e quem sabe um dia trabalha
aqui para nós. Rosnou o homem de cara e fala sistemática.
Após aquele conselho não tive mais dúvidas;
entrei de cara nos estudos para valer e daí colhi total nos exercícios
e provas da escola. Pensava obstinadamente em estudar para trabalhar
na tão sonhada estação de trem. Meus irmãos
me criticavam por que não brincava muito. Papai e mamãe
queriam me internar, achavam que estava com neurose aguçada.
Todos da minha rua me olhavam meio de lado. Eu estava nem aí
pra língua do povo. O que importava era que um dia trabalharia
na ferrovia.
O tempo passara e eu consegui com mérito o
diploma de segundo grau. Estudei com esmero, e minha fama já
se espalhara na cidadezinha. Enfim, chegou o dia em que me vi com a
carteira de trabalho na mão, assinada por seu Amâncio.
Iria começar trabalhando de trocador no trem. Falavam as más
línguas que na partida para cidade de Balelema saía lotado
de passageiros. Mas na volta vinha apenas um passageiro. Diziam que
era assombração, passageiro vestido de terno escuro, chapéu
de abas largas, barbudo e cheirando a flor de defunto. Sempre sentado
na poltrona vinte e três...
Pura lenda de cidade pequena, onde ninguém
tinha ocupação; levantavam mais cedo para terminar o serviço
e ir para porta da rua futricar sobre a vida alheia e colocar minhocas
assombrosas nas cabeças dos jovens e adultos. Eu, homem crescido,
descrente e corajoso, ia de peito estufado e uniforme engomado para
o primeiro dia de trabalho. Na primeira viagem noturna, o maquinista
me esperava na porta para explicar o que fazer com os formulários,
inspecionar crianças que entravam sozinhas, dinheiro para troco,
conferir os bilhetes... Nem pisquei quando o bondoso maquinista falava.
Prestava muita atenção nas instruções para
não cometer erros! O coração batia acelerado no
peito de contentamento e ansiedade. Faltava meia hora para a partida
do trem das dezoito horas com destino à cidade de Balelema e
já chegavam à porta alguns passageiros com os bilhetes
para conferência. Cumprimentava todos com um sorriso largo nos
lábios, desejando boa viagem. Observei todos que entravam, nenhuma
figura estranha chegara até então. Tudo lorota do povo
de cidadezinha do interior!
Tudo normal. Fui para perto do maquinista que conversou
comigo alegremente. Chegamos à cidade por volta das vinte e três
horas e quarenta e cinco minutos. Uma serração densa aguardava
os passageiros na estação e um vento gelado penetrava
nossos corpos. O lugar estava vazio, alguns vigilantes, mulheres e seus
encontros, dois táxis, algumas pessoas aguardavam os passageiros
do trem. Não consegui ver mais nada. Um friozinho passou minha
espinha, quando todos os passageiros desceram apressados do trem e um
homem de terno escuro entrou e sentou na poltrona vinte e três...
Logo que o trem deu a partida, caminhei rumo á poltrona vinte
e três e conferi o bilhete com as mãos e pernas trêmulas.
O homem exibia um olhar escuro e ao mesmo tempo fundo, enigmático...
Não respondeu meu cumprimento, não queria conversa...
Um cheiro de naftalina misturado com flores de defunto exalava de seu
corpo. O medo começou a suar meu corpo com lembranças
das histórias do passageiro da poltrona vinte e três! Como
que adivinhando meus pensamentos, o homem levantou a cabeça,
olhou demoradamente nos meus olhos e não balbuciou nenhuma palavra.
Um clarão penetrou os olhos de tal maneira que numa fração
de segundos fiquei completamente cego. Uma luz branca, meio amarelada
invadiu os olhos... Não vi mais nada, acordei horas depois com
o maquinista balançando meu corpo jogado na poltrona vinte e
três. O uniforme estava todo babado. Tinha dormido na volta?!
Pouco provável! Procurei avidamente o homem de terno escuro,
não havia ninguém. Olhei para o maquinista e perguntei
se o passageiro de terno escuro, alto, barbudo tinha descido do trem.
O maquinista olhou para mim estranho e disse: nenhum passageiro veio
neste trem. Aliás, ninguém jamais retornou de Balelema
nos longos anos em que trabalho nesta rota. Perguntou se eu estava bem.
Balancei a cabeça afirmativamente e fui bater ponto no relógio
na sala do senhor Amâncio. Na galeria de fotos da parede da sala,
pendiam vários retratos espalhados de homens que trabalharam
na ferrovia. Estava lá, soberbo, primeiro retrato na galeria
dos mortos, o homem vestido de terno escuro, chapéu de abas largas,
barbudo, cheirando a naftalina e flor de defunto.
Crônica
ao meu pai