Camilo
Francisco Leal
(1922- 2004) artista plástico, escultor, compositor, contista
e poeta, nasceu em Bica da Pedra, SP. Foi um dos pioneiros do Norte
do Paraná, que em 1952 trabalhou na fundação e
administração da Fazenda Rio da Prata em São João
do Caiuá. Em 1963 mudou-se para Maringá, onde viveu até
seu facelimento.
GANANZAMA
CHUÁ
Na cozinha da Fazenda Troncão a escrava Mãe Bárbara
conversa com sua sobrinha, a escrava mucama Lane Congo:
- Escute o que eu to dizeno pra ocê. O Leopoldo, meu marido, morreu
acidentado na Fazenda do Vale. Foi um grande choque. Ele era tão
bão pra mim. Agora nóis aqui longe, aprisionada, sem liberdade...
Quando ele tava do nosso lado era tão bão. E agora morreu
meu fio com um meis de idade. Tenho bastante leite que inté ta
doloreno meus peito. Inda mais agora. O Sinhô me alugo pra sua
cunhada que tem um fio e ela não tem leite pra amamenta. É!
Eu vô tê qui fica quagi dois anos dano mamá pr’ele.
Peço pr’ocê, mucana Lane, pra Elpídia e pr’ocê
Maud Lumba, minhas treis subrinha que estimo iguá a minima dos
meus óio, tenha juízo, molecas. Faça tudo o que
fô mandado, pra não sê castigada na minha ausência.
- Tenha cuidado, minha tia! Vá e não se preocupe. Vamos
faze o possive pra não sê castigada.
- Então, eu vô. Cuide dos moleques. Inté lá.
E nada de choro, minhas moleca.
O feitor Raimundo Caiolá dá ordens aos escravos.
- O tempo ta carrancudo; pelo jeito vai caí chuva e temo muito
fejão no carriadô. Não importa si bamo coiê
quagi dois mir saco. O que importa é que bamo coiê tudo
e que não bamo perde nada. Todo escravo passe logo na pia de
saco, sem recramá, ponha na cabeça um ou dois saco e leve
inté a tuia. Precisamo guarda tudo e os carro num vai dá
cont. Bamo ajuda os carro, por mode que os boi tão cansado. Depois
que entrega o saco de feijão pro feitô, na tuia daí
pode í pra senzala. Quem não quisé leva, fica essa
noite sem comida. Bamo, negada, se encarreia que nem furmiga. E vancê,
Magoado, por que não qué carrega seu saco de feijão?
- Meu Sinhô, me perdoe. Não güento com um saco de
feijão dois arquere e meio. Carreguei muito tempo que era moço.
Hoje não dá mais. Já tenho guagi cem amo; to cansado.
- Você é vagabundo! Como é que o Boieiro bate no
cocho e vancê não pode...? É o primeiro que aparece.
Se não leva o saco de fejão, vancê vai fica sem
comê essa noite.
- Meu Sinhô, não levo; meu corpo não güenta...
- Logo com isso, negada! E vancê ta me respondendo, negro safado!
Sabe o que vô fazê, negro... ah? Vô lhe amarra nesse
laço e vô leva cincha do meu cavalo e entrega pro feito
do viramundo. E se não corre, meu cavalo arrasta.
- Pelo amo de São Jorge que ta dentro da luma, lá inriba
da nossa cabeça no céu, veno o que ta aconteceno aqui
na terra, me sorte desse laço.
- Não sorto, não negro! Ah-rã! Vancê vai
pro viramundo pra aprende, negro...
O escravo Magoado, lançado, é entregue ao feitor do viramundo
nestes termos:
- Castigue o Magoado, Feitor. Não tenha presa pra pará,
não. Quero que ele aprenda a não desobedecê a disciplina
da Fazenda.
- Deixe por minha conta, feitor Raimundo Caiolá. Ele bem sabe
que nosso viramundo tem mó. E ele vai te que moê um saco
de mio inté amanhã cedo e faze fubá... deixe comigo.
O feitor Raimundo Caiolá voltou para cuidar dos escravos que
carregavam feijão, enquanto o velho negro Magoado gritava à
sorte:
- Gente, me sorte desse viramundo. Oh! Meu São Jorge! Tiraram
minha tanga e o tango, ataram-me as mãos como um ladrão,
crueldade sem amor. Eu sô véio cativo que muito trabaiei
pro coroné. Por que tanto me judia? Sinhá Moça
na janela, venha e mande pará de me judiá.
- Negro, seu nome é Magoado e muito mais magoado você vai
ficá se não moê esse saco de mio inté amanhã
cedo e fazê fubá. Não pare de girá o viramundo
pra não sê mais castigado.
E o velho mal conseguia fazer mover o viramundo.
A escrava Mãe Maria, que ia buscar fubá, ao ver tal acontecimento,
corre escondida e chama Sinhazinha Marlene, a quem os escravos colocaram
o nome de Gananzama Chuá, como agradecimento à proteção
que ela dá a eles. A Sinhazinha, perplexa com tal barbaridade,
vai até o viramundo e repreende com veemência o feitor.
- Liberdade imediatamente ao Véio Magoado. Ele não merece
esse castigo. De hoje em diante o Véio Magoado não vai
ter mais que trabalhar no pesado. Eu quero que ele apenas fique para
contar estórias para os moleques. Acho que o Véio tem
muito o que contar. Sirva farofa pra ele, Mãe Maria. Ele deve
de estar com fome.
Ela saiu rumo a casa carregando Gustavo, que apareceu ali correndo,
o seu gato de estimação.
A escrava Mãe Maria ao cuidar do velho escravo lembra a ele os
ensinamentos de Mãe Bárbara e comenta saudosa da escrava
amiga, alugada há poucos dias:
- Enquanto existi descendente de escravo da Fazenda Troncão nessa
terra, vai te roda pra louva Gananzama Chuá, fia do Coroné
Bento de Prado, por sê bondosa, faze caridade, livrá os
escravo quando são castigados injustamente. É! Mãe
Bárbara tem razão... Nóis tudo daqui da Fazenda
Troncão do Itu Rio Paranapanema sempre bamo cantá Gananzama
Chuá.
TRANSA
DO SAPO JORDÃO
A Gia Chiva, bem casada com o Sapo Jordão, tem seu casebre confortável
no barro da lagoa. Vem uma crise danada de frio, e a mosquitada vai
embora. É preciso apertar o cinto para viver. O sapo Jordão
começa a reclamar:
- Gia Chica, você está muito extravagante.
- Não diga isso, Sapo Jordão; você nunca foi assim!
- Gia Chica, escute o que estou lhe dizendo. Você limpa camarão,
tirando perna, bigodes... não aproveita, esperdiça muito!
Desse jeito morro de trabalhar e nunca ajunto nada na minha vida; vamos
ficar sempre na miséria... As coisas tudo caro, pela hora da
morte. Não dá mais para viver em companhia de uma gia
sem futuro. Nessa noite vou abrir o pé no mundo.
- Não faça isso, Sapo Jordão. É muito feito
para nós casar e separar. E ainda nesta lagoa. Tem muito sapo
metido a bacana e atrevido. Sabendo que estou só em casa, ele
vêm tirar casquinha. Tenho medo...
Não tem jeito. O sapo Jordão sai mesmo de sua casa e escreve
uma carta de divórcio.
Gia Chica recebe a carta por mãos de um portador, o Grilo, e
garra a ler, e cai. É resultado da ira, é resultado da
dor.
O sapo Jordão, vagando por terras alheias, tenta transar com
uma aranha na teia.
- Bela Aranha Marília, to aí na sua teia?
- Dê o fora, Sapo Jordão. Sou uma aranha solitária,
mas tranqüila, Tenho meus recursos próprios.
- Bela Aranha Marília, minha barriga está no fundo. Descole-me
um mastigo. Eu e você na sua teia. Nós dois juntinhos será
bem melhor. Mande-me um fio; quero subir.
- Vá embora, sapo rabugento! Atente suas gias lambuzadas de barro.
O Sapo Jordão, envergonhado, pensa em desistir. Dá dois
pulos para trás, pára, estira as pernas, abre a boca,
espreguiça, limpa os olhos e olha novamente para a aranha; enruga
a testa, fica carrancudo, estufa a barriga e o pescoço –
fica empapuçado. Pula para cima da cadeira; depois, de uma mesa;
salta em cima de um rádio velho e em seguida de um armário
e dele derruba um litro meio de mel que se espatifa, sujando o piso.
Sapo Jordão se ajeita em um xaxim de samambaia no canto da cozinha
da velha Madame Luzia.
A velha Madame Luzia, preocupada com a pulga no cós da saia,
que ferroa aqui e acolá, vê-se sem poder pegá-la.
Suspende a barra e com as pontas dos dedos consegue esmagar a pequena
grande perturbadora.
Ao estrondar do litro quebrado, sua cara cai no chão. Mais do
que depressa, envergonhada solta a saia rendada que de repente cobre
as pernas de pele fina e branca. Observa o litro quebrado, mel derramado.
Olha os quatro cantos da cozinha e a casa em geral, sem sucesso. Começa
a enculcar, falando com um personagem invisível.
- Pois faz hoje um amo que meu segundo marido morreu, por motivo de
alguma discórdia em nosso passado. Pode ser que sua alma precise
de alguma oração.
Ajoelhada a velha e com mãos postas, levantadas aos céus,
ora. Como ato de fé e devoção derrama uma caneca
de água na samambaia e prossegue:
- Talvez, meu marido, sua alma esteja com sede e precisa de beber.
O Sapo Jordão é muito caloroso – e de fato faz calor
de quarenta graus – e com aquela caneca d’água fresca,
cristalina em sua cabeça, ele pega em alma nova, regala os olhos,
abre a boca e estira a língua; estufa o peito, a costa... e fica
contente com o refrescar.
Continua a velha Madame Luzia a falar com seu personagem:
- Vou catar os cacarecos do litro quebrado e limpar a meleca do mel
derramado, mas estou muito preocupada com isso.
O Sapo Jordão, bem agasalhado no xaxim da samambaia, tem a bela
Aranha Marília bem perto do seu bigode, mas não pode alcançá-la,
pois ela não permite que ele se aproxime de sua teia. E ele fala:
- Sabe o que vou fazer, bela Aranha Marília. Veja: faz dias que
estou aqui perto de você e não consigo me aproximar porque
aquela velha não descuida da cozinha.
- Não faça nada, Sapo Jordão. Eu alarmo e você
será assassinado. Deixe-me quieta em minha casa.
- Eu faço sim, num pique. Quando ela vier pôr água
na samambaia, vou fazer-lhe uma surpresa que ela ficará cega;
nessa oportunidade solto para sua teia.
A velha Madame Luzia chega com a caneca d’água, tranqüila,
assobiando a música do hino da sua igreja. Com a mão esquerda
abre e ajeita as folhas da samambaia, com a direita coloca água.
O Sapo Jordão, bem humorado, na boa, estufa a barriga, fecha
a boca, afirme bem as duas mãos no enchimento do xaxim, levanta
sua parte traseira e lasca uma violenta urinada no meio da cara da velha.
O chuá-chuá atinge frontalmente os dois olhos da mulher
que grita desesperadamente:
- Meu Deus dos céus! Coisa ardida nos meus olhos! Vou ficar cega.
Bem depressa o Sapo Jordão solta na teia da formosa e bela Aranha
Marília. Abraça-a, beija-a, calorosamente, mas ela abre
a boca do mundo.
A velha Madame Luzia escuta aquele horroroso barulho no teto, no canto
da cozinha e observou o mais completo agarramento sem-vergonha-aranha
e sapo – que o mundo jamais viu coisa igual. Dá-lhe uma
vassourado no pé-do-ouvido do Sapo Jordão, que ele caiu
com uma perna quebrada. Mas, em seguida, ele foge. E a aranha tem sua
teia vasculhada e queimada pela velha.
O Sapo Jordão, com uma perna quebrada, perambula em terras alheias,
sem leito, sem bastão, sem socorro da ortopedia e com dores cravadas.
A gangrena chega e nesse meio de tempo sua perna seca. Mas, o Sapo Jordão
continua a andar só com três pernas.
Na caminhada passa por perto de uma tapera e um cachorro vira-latas,
valente caçador de ratazanas, dá-lhe três mordidas;
joga-o para cima de uma jaqueira. Ao se despencar de lá, caiu
dentro de um poço velho. É o fim do Sapo Jordão.