Comentários e Críticas

Livro de Andreia Donadon Leal é comentado no Jornal Ponto Final em 28 de junho de 2013.

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Essências: flores e frutos e luzes

Por: Clevane Pessoa de Araújo (*)

O mais recente livro de poemas de Andreia Donadon possui um título amplo, que resume o conceito da autora em reunir dos menores em número de versos, aos demais, uma viagem por seu próprio self. Há um constante diálogo com ela mesma. Sem pejo para tratar temas não usuais - qual sua histerectomia - a usar palavras do jargão médico, da mesma forma com que trata de flores - rosas negras, cravos, flor de laranjeira, porque o título evoca pomos e todos vêm da flor. Da mesma forma os órgãos femininos são plenos dessas florações. Mas aponta a "falência da flor" e sem pena, assinala as decreptudes, contesta Van Gogh ("porque cortou os girassóis, Van Gogh?") e aponta ela mesma para a resposta, auto aplicável: "rebeldia /ou criação divina?". Mas não se trata de mais um poemário apenas feminino. Há uma universalidade buscada, que atenderá a todos os necessários contatos. A autora é incansável pesquisadora e costumizadora de versos, a recriar o velho no novo, capaz de promover desfiles verbais em passarelas, golpeando, golpeando-se, para neopoemagem, neoplumagem, donde asas fortalecem-se para prováveis voos. Faz com leveza jogos de palavras ("nos cais/e /nos caos de mim mesmo") e subverte intencionalmente afirmativas. Embora seja da escola aldravista/aldravianista e privilegie, com seus pares, a metonímia, oferece poemas-ensaios bons de analisar a fundo. Leia-se, por exemplo "Ossos, entranhas, fissuras & pedras" e ainda "Sinfonia das Flores". Passíveis de debates e aprofundamentos, vivências e discussões de sutilezas camufladas, além das expostas. Fraturas expostas e microfraturas, emendas e curas, males, sanidades e insanidades próprias do ser - em si e no mundo. Ramalhete completo. Faz-se, em sua poética desse novo livro, a fusão de Deméter capaz de trazer seca à terra, no luto de sua filha Perséfone raptada por Hades, com esta própria, pois sabe que é necessário deixar voltar a Gaia todas as estações, as messes e não apenas a doença causada pelas perdas. Mãe e filha precisam coexistir para a alegria de viver voltar. E então, é permitido que a jovem retorne periodicamente do mundo subterrâneo oferecer uma esperança de novas colheitas à agônica terra e com ela, voltam "sonhos e frutos e luzes", essências para a alma e para o corpo. Só assim, o inferno tem de esperar. Sendo artista visual, há uma orgia de cores e formas, nesse seu novo livro. Ela poderia fazer uma tela para cada um dos poemas. Qual Frida Khalo mostrava pictoricamente seu estado de saúde, suas cirurgias, além de outros motivos de inspiração. Poematiza a existência, suas perplexidades e lança-se a esgotar temas, mas ela própria deixa portas entreabertas, onde por certo, voltará a passar. É a mesma dinâmica de suas telas aldravistas, onde o livro tem capa dela própria, a diagramação impecável do poeta Gabriel Bicalho, que também assina o projeto gráfico. Editora Aldrava Letras e Artes, prefácio do Prof. Dr.José Luiz Foureaux de Souza Júnior, Pós-doutor em Literatura Comparada, que leciona na UFOP, Literatura Luso-Brasileira.
(*) Clevane Pessoa de Araújo Lopes - Acadêmica da AFEMIL-N.05-Cecília Meireles; da ALB-Mariana, N.11, Laís Corrêa de Araújo; da AILA, Titular cadeira 05-Luiz da Silva Rocha Rafael.

Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências
Humanas e Ciências Sociais – Ano 07 Nº 13 – 2011 ISSN 1809-3264
Páginas: 172 a 175


BICALHO, Gabriel ; DONADON-LEAL, José Benedito ; LEAL, Andreia Donadon ; FERREIRA, José Sebastião. Ventre de Minas: poesia. Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2009, 124p.
José Luiz Foureaux de Souza Júnior, Ph.D.
UFOP


O trocadilho é a segunda arte mais antiga da humanidade, ficando atrás (no bom sentido) apenas da boa e velha prostituição. Registros de trocadilhos podem ser encontrados ao longo de toda a história humana. O seu nome mais? erudito? é Paranomásia ou paronomásia: figura de estilo que consiste no emprego de palavras parônimas (com sonoridade semelhante) numa mesma frase: espécie de jogo de palavras que apresentam sons semelhantes ou iguais, mas que possuem significados diferentes, de que resultam equívocos por vezes engraçados. No discurso, pode ser reconhecido como o uso de expressão que dá margem a diversas interpretações./ A etimologia ensina que a palavra é formada da seguinte maneira: trocado + -ilho. A língua espanhola cunhou expressão curiosa: a la trocadilla, que significa ?às avessas?.
Os trocadilhos constituem um dos recursos retóricos mais utilizados em discursos humorísticos e publicitários. Resulta sempre da semelhança fonética ou sintática de dois enunciados cuja conjunção, comparação ou subentendido (enunciado elíptico, não referido diretamente) cria um efeito inesperado, intencional ou não, aproveitando a sonoridade similar e o efeito de surpresa sobre o ouvinte ou o leitor da junção de significados díspares num mesmo contexto. Os trocadilhos mais frequentes são cacofonias em que uma determinada palavra é pronunciada de forma a parecer outra, geralmente com intenção humorística, maliciosa, obscena e/ou grosseira.
De uma forma ou de outra, penso que o trocadilho pode ser um curioso e interessante instrumento de abordagem do fenômeno poético. Inventa, tanta coisa, codificam inúmeras regras, estipulam tantos critérios... Penso que mais um vai fazer diferença mínima. A placidez da superfície da crítica autorizada não há de se abalar. Por isso, penso que o trocadilho é a feliz chave de leitura do volume em epígrafe. Livro de poesia, essa matéria inconsútil, fruto de trabalho de urdiduras múltiplas e infinitas: fenômeno cultural. Explico-me.
Em 2009, o prêmio Vivaleitura – Iniciativa do Ministério da Educação (MEC), do Ministério da Cultura (MinC) e da Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), com realização e patrocínio da Fundação Santillana. O apoio do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). O Prêmio Vivaleitura faz parte do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) – foi vencido por ANDRÉIA Donadon Leal, coordenadora de projetos da Associação Aldrava Letras e Artes, com sede em Mariana-MG. Ela apresnetou o projeto ?Poesia viva – a poesia bate a sua porta?. Um grupo d epoetas aldravistas percorre as ruas da primaz de Minas Gerais, lendo poemas, distribuindo livros, incentivando a leitura, promovendo cultura, no mais elevado dos sentidos. Parte da produção poética desse grupo está reunida no livro Ventre de Minas.
Esta associação congrega, entre outros, os quatro autores do livro aqui resenhado: Andreia Donadon Leal, Gabriel Bicalho, José Benedito Donadon Leal, e José Sebastião Ferreira – para seguir a ordem alfabética dos primeiros nomes. Poetas aldravistas, eles colaboraram na composição do volume, consolidando produção de quilate inqualificável, porque os pressupostos ?canônicos? ainda parecem não se dar conta de que a flexibilidade e a criatividade são – estes sim! – critérios irrecorríveis para ler poesia, ler e interpretar, interpretar e criticar, se é que me entendem!
Pois bem, a ideia do trocadilho, para mim, nasce no próprio título do volume – Ventre de Minas. Pensem comigo. A expressão pode significar um local que gera minas, como minas de ouro e prata, minas de ideias, minas de palavras. Por outro lado, pode também significar o ventre mesmo de Minas, onde Minas Gerais nasceu. De certa forma, o segundo sentido fica mais explícito dada a origem do movimento aldravista, a mesma da origem dos poemas. Na História da Literatura Brasileira, Minas Gerais comparece, repetidas vezes como fonte de inovações, renovações, protestos: dinamismo da criação literária, herdada, como as demais mundo afora, da antiguidade do próprio homem. Desde os árcades, esta tradição se consolida. Em vários momentos, a ribalta foi ocupada por nomes mineiros, radicados ou não nas alterosas. De um e/ou de outro modo, Minas Gerais sempre pontuou a poesia com centelhas de beleza e criatividade.
O movimento aldravista, nessas quatro vozes poéticas, que passaram à fase da gestação nesse Ventre de Minas é um exemplo. Mais um e outromais: o aldravismo, metonimicamente bate à porta do cânone, clamando por atenção – devida e merecida – em acordes poéticos concertados por memórias, releituras, visadas e retornos poéticos. São os quatro cavaleiros de um novo apocalipse, em nada e por nada destruidor e ou temeroso. Carinhosamente os trato assim, daqui por diante. A poesia deles harmoniza uma proposta de poesia para ser debatida, degustada, desvendada, ao sabor da História de vida de cada leitor. Quatro livros em um. Cada um deles é ?um continente metonímico de uma possível particularidade de Minas?.
Gabriel Bicalho cria, em palavras as metonimizações das aldravas, símbolos de uma cultura social – tricentenária em Minas – chamando a atenção de quem está ?fechado?, dentro de casa. José Benedito Donadon-Leal, discursivamente, também metonimiza as batidas das aldravas – sons que se misturam a sentimentos e ideias, provocando as retinas – por vezes cansadas – de leitores possíveis: uma provocação que clama por horizontes mais amplos. Andreia Donadon Leal e seus frutos, frutos de mulher e da terra, frutos verbo-visuais que alimentam a imaginação metonímica de quem se aventura por seu jogo de sedução pela palavra que visualiza o desejo. José Sebastião Ferreira, como um bebê carinhoso, clama pela maternidade de Minas – aventura existencial que não perde jovialidade, numa indisfarçada infância que se eterniza nas minerais palavras que suscitam memórias, igualmente eternas, porque vividas. São ?provocações para leitores disponíveis a descobertas?.
ponta de barriga
ventre oco
estufado
de frutos outonais
Andréia, sem se furtar à expressão da proverbial sensibilidade feminina, não cai na mesmice. Seus delicados versos remontam ao próprio título do volume, neste pequeno excerto. Do conjunto, destacam-se os versos que ecoam a maternidade – talvez perdida, sabe-se lá por que circunstância – na estação d ávida que, geral e popularmente dizem da fragilidade, do fim, da conclusão. Paradoxalmente, seu ?ventre? estufa a expressão poética do eterno feminino que, no embate dos gêneros, identifica, se assemelha, se aproxima, sem margens, nem cadeias, como o eco da voz alterosa que revoa sobre as montanhas da primaz.
Coroação
os anjos descem
voando
ladeira abaixo,
no maior escarcéu,
enquanto Nossa Senhora
os espera
pacientemente
na Catedral,
para ser coroada
Rainha do céu.
A infância e a inocência da criança permanecem nos versos de José Sebastião Ferreira. O sentido parece ser o de eternizar a magia da tradição que sobe e desce as ladeiras de Minas. O movimento, agitado como todos os que pontuam a infância, é volátil, mas permanece cristalizado na religiosidade que anima o caráter mais popular dessas mesmas tradições: a fé. Narrativa microscopia que se desenrola em versos, o poeta revive a memória, colorindo o devaneio com a delicadeza da criança e a grandiosidade da fé.
duas faces
a porta mesma
intransponível
obstáculo
entre
a casa
e
o
caos
Há quem diga que poesia é a mais pura expressão icônica da linguagem. Há quem duvide. Há quem discuta. Pode haver que não aceite. José Benedito Donadon Leal aposta na livre expressão da palavra poética, sem fugir aos torneios intrínsecos a um fazer – icônico, por que não? – poético que, metonimicamente desafia o olhar mais experimentado. A sombra, em tudo e por tudo refrescante dos hai kai, pontifica leve e transparente nos versos do poeta que, renovando o título do livro, abre espaço para experiências poéticas que não se dizem: objeto de tentativas retroalimentadas pelo desejo de... dizer.
Da pedra II
/
limo
ou lesma
//
visco ou palavra
///
sentir
:
toda
pedra
sabe
a poesia do musgo
que a torna macia
e
a dura escritura
da vida sombria
:
deixem-na
polida
!
Os versos de Gabriel Bicalho criam atmosfera úmida serra que envolve Mariana. A reverberação de sensações táteis e visuais provoca o espírito atento e sensível para a voz que clama por permanência e cuidado. O grito de protesto pelo desperdício e o descuido, ecoa implícito nas rimas internas que repetem sons, na melodia suave enevoada do poema. Resulta do trabalho de escavar sentidos, como no percurso desse pequeno poema a fragilidade sólida do verbo poético que, virilmente, suaviza arestas para expor beleza e sensibilidade.
Assim que o movimento começou a dar mostras de sua pujança artística – isso faz mais de dez anos – escrevi um pequeno texto que serviu de apresentação ao volume em que os aldravistas de Mariana apresentavam seus primeiros ?manifestos?. Superando a sua herança cultural de projeção e liberdade, eles marcaram uma etapa de renovação no fazer poético de Minas Gerais, expandindo seus horizontes de expectativas para muito além das alterosas. Reproduzo aqui um pequeno trecho do referido texto de minha autoria. A reprodução dialoga com minhas impressões acerca do volume aqui resenhado. O ensejo é o de reafirmar minha convicção na mais absoluta certeza de que o aldravismo veio para ficar.
Na contramão da acepção dicionarizada de aprisionamento, a aldrava, aqui, abre caminhos para um exercício de experimentação que em nada se torna pejorativo, quando observado sob a perspectiva de uma manifestação ?regional? de cultura. Regional, sim, sem medo da palavra, pois é exatamente do que se trata, quando se fala do ?aldravismo?. A proposição espraiada pelas páginas do volume atesta a fertilidade do pensamento local, sem demérito de seu perímetro cultural, pois, sem ele, nada do que se conhece como cultura haveria de permanecer consolidado ao longo do tempo. A discussão sobre o cânone, as referências à cultura popular – sem, necessariamente, subscrever qualquer das perspectivas dialéticas que esse binômio já suscitou em nosso meio – fazem jus ao caminho trilhado pelos autores que, em seu conjunto, ultrapassam qualquer ?classificação?, uma vez que se colocam de maneira aberta e consciente à leitura, num gesto rasgado de abnegação e disponibilidade, traços de generosidade intelectual, raro, em nossos dias.
A antologia poética não deixa de acompanhar o mesmo tom e, em seu conjunto, justifica e exemplifica, ao mesmo tempo, os protestos de manifestação do aldravismo, enquanto uma via peculiar, marcada por uma subjetividade igualmente peculiar que se enuncia em cada verso. Sem entrar no mérito supostamente crítico, arrisco uma opinião pessoal: trata-se de manifestação poética de valor cultural inegável que intriga pela simplicidade e se destaca pela crueza com que desenha o perfil regional de Minas Gerais, de uma maneira, até, original. O trabalho em seu conjunto merece atenção, não apenas por seu conteúdo, o que já seria justificável, mas por sua contribuição a um exercício tão pouco praticado, principalmente, por aqueles que se dizem intelectuais. Assumir essa ?identidade? não é jamais manter uma pose, mas se fazer, concretamente, instrumento de explicitação de idéias e ideais, artísticos acima de tudo, com a convicção de se estar construindo algo que contribua para incentivar a leitura, em seu sentido mais elevado e amplo. Esse é, a meu ver, o propósito aqui, o que, por si só, já justifica a leitura dos textos apresentados no livro Ventre de Minas.
O livro, desde seu lançamento, é distribuído gratuitamente, para quem os poetas autores encontram pelo caminho. Os curiosos também podem ser aquinhoados com esse presente, uma pepita incrustada nas terras mineiras, não silente, não adormecida, mas rica de um fulgor caro e intrínseco à poesia: canto que move a existência. Como mais um ponto de partida, este trabalho do grupo de aldravistas de Mariana inaugurou um canto apreendido no ventre das alterosas e rompeu forte de suas próprias entranhas minerais – mais um trocadilho! –ressoando pelo Brasil e pelas lonjuras da África, da Europa e da América do Sul. Parabéns ao grupo. Vamos à leitura!
Publicado em 15/02/2011 na Revista Querubim: http://www.uff.br/feuffrevistaquerubim/images/arquivos/publicacoes/zquerubim_13.pdf