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Aldravismo
- a literatura do Sujeito
Este
manifesto apresenta ao público a PROPOSTA ALDRAVISTA de fazer poético.
Sem a pretensão de superar tendência alguma, o Aldravismo
busca aproveitar todas as portas discursivas abertas pelo pós-modernismo,
muito embora este tenha ainda privilegiado o texto. Mas, dos textos saltam
discursos heterogêneos, e são esses discursos que interessam
os aldravistas. Trata-se de saber usar o texto devoluto, de ninguém
e de todos ao mesmo tempo. O texto, por certo, nada mais é do que
um envelope, dentro do qual colocamos os discursos. Discursos são
fluxos de idéias que habitam as cabeças dos sujeitos caminhantes,
ditando os passos, as condutas, as manifestações todas da
atividade humana. Nova tendência literária para o Século
XXI.
Texto
de orelha do livro Aldravismo - a literatura do sujeito.
Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2002.
APRESENTAÇÃO
MARIANA,
JUNHO, 2002
Professor
José Luiz Foureaux de Souza Júnior
Doutor em Literatura Comparada pela UFMG
Conta
a lenda que os homens pré-históricos, num ato inexplicável
(até hoje), começaram a representar suas idéias em
desenhos (as famosas pinturas rupestres). Com esse ato eles criaram a
noção de uma linguagem que, se se pode pensar assim, ultrapassava
os então conhecidos meios de comunicação “social”.
As aspas são necessárias, uma vez que os conceitos –
escondidos por detrás das palavras – podem ser traidores
do pensamento e levar o leitor a fazer tabula rasa da História
que acaba por conduzir o fio do pensamento humano sobre suas próprias
conquistas e criações, ao longo do tempo – o inexorável
tempo.
É assim que esses homens legaram, no mínimo, a oportunidade
de seus “iguais” fazerem o mesmo na corrente do deus Cronos,
com todas as variações que o imponderável futuro
ia possibilitando. E continua a fazê-lo. Dessa lenda surge a idéia
mestra do ALDRAVISMO: A DE QUE É SEMPRE POSSÍVEL INOVAR
( e não há outra maneira para faze-lo de maneira satisfatória),
senão partindo do óbvio ululante, como diria Nelson Rodrigues.
Esse eterno recomeçar, signo nietzscheano do “fracasso”
humano, cobre de glória a iniciativa do Aldravismo, como se pode
constatar nas páginas do presente livro. Ultrapassando a fase das
pinturas rupestres, trato aqui das palavras e, nesse sentido, recorro
ao famoso “pai dos burros”, sem desrespeitar o vernáculo,
uma vez que se trata de CULTURA E CULTURA enquanto intervenção
do sujeito. Assim, vamos ao dicionário: Aldrava, indica o dicionário
do Houaiss, vem de “aldraba”.
•
pequena tranca metálica para fechar a porta, com dispositivo por
fora para abrir e fechar, ferrolho;
• (1896) tranca usada para escorar portas e janelas;
• (1712) peça móvel de metal, em forma de argola,
mão, etc., que se encontra do lado de fora para chamar; batedor;
• perneira de couro usado pelos sertanejos;
• pequena tranca de ferro que segura a cara do leme por ante-à-ré
da parte superior da madre do leme.
Estranha
palavra essa que remete, em sua história étimo-semântica
a uma idéia de aprisionamento, mas ao mesmo tempo de abertura e
chamamento. Principalmente quando utilizada por um grupo de pessoas que,
antes de qualquer coisa, estão preocupadas com a arte de utilizar
a palavra para produzir idéias, beleza, renovação
do pensamento.Esse ao meu ver, o prisma principal desse volume que publica
os MANIFESTOS ALDRAVISTAS, uma antologia poética e ensaios de cultura
popular. Tocando numa “ferida” (paradoxalmente) muito cultivada
pela “academia” esse conjunto de ensaios e poesias manifesta
o desejo constante de uma superação, através dos
recursos mais simples que a espécie humana já conheceu:
A LINGUAGEM. Simples, por um lado apenas, pois a complexidade desse “fenômeno”
explicita-se em tantas e tão variadas formas, que não se
pode sair impune do uso do adjetivo “simples”.
Na contramão da acepção dicionarizada de aprisionamento,
a aldrava, aqui, abre caminhos para um exercício de experimentação
que em nada se torna pejorativo, quando observado sob a perspectiva de
uma manifestação “regional” de cultura. Regional,
sim, sem medo da palavra, pois é exatamente do que se trata, quando
se fala do “aldravismo”. A proposição espraiada
pelas páginas do volume atesta a fertilidade do pensamento local,
sem demérito de seu perímetro cultural, pois, sem ele, nada
do que se conhece como cultura haveria de permanecer consolidado ao longo
do tempo. A discussão sobre o cânone, as referências
à cultura popular – sem, necessariamente, subscrever qualquer
das perspectivas dialéticas que esse binômio já suscitou
em nosso meio – fazem jus ao caminho trilhado pelos autores que,
em seu conjunto, ultrapassam qualquer “classificação”,
uma vez que se colocam de maneira aberta e consciente à leitura,
num gesto rasgado de abnegação e disponibilidade, traços
de generosidade intelectual, raro, em nossos dias.
A antologia poética não deixa de acompanhar o mesmo tom
e, em seu conjunto, justifica e exemplifica, ao mesmo tempo, os protestos
de manifestação do aldravismo, enquanto uma via peculiar,
marcada por uma subjetividade igualmente peculiar que se enuncia em cada
verso. Sem entrar no mérito supostamente crítico, arrisco
uma opinião pessoal: TRATA-SE de uma manifestação
poética de valor cultural inegável que intriga pela simplicidade
e se destaca pela crueza com que desenha o perfil regional de Minas Gerais,
de uma maneira, até, original. O trabalho em seu conjunto merece
atenção, não apenas por seu conteúdo, o que
já se justificaria, mas por sua contribuição a um
exercício tão pouco praticado, principalmente, por aqueles
que se dizem intelectuais. Assumir essa “identidade” não
é jamais manter uma pose, mas se fazer, concretamente, instrumento
de explicitação de idéias e ideais, artísticos
acima de tudo, com a convicção de se estar construindo algo
que contribua para incentivar a leitura, em seu sentido mais elevado e
amplo. Esse é, a meu ver, o propósito aqui, o que, por si
só, já justifica a leitura do textos apresentados no livro
Aldravismo – a Literatura do Sujeito.
Texto
de apresentação do livro Aldravismo - a literatura
do sujeito. Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2002.
MANIFESTO
ALDRÁVICO
(A CARAVELA VAZIA DE GABRIEL BICALHO)
J. B. Donadon-Leal
Esta
primeira manifestação aldrávica busca apresentar
ao público a proposta aldrávica de fazer poético.
Sem a pretensão de superar tendência alguma, esta proposta
busca aproveitar todas as portas discursivas abertas pelo pós-modernismo,
muito embora este tenha ainda privilegiado o texto. Mas, dos textos saltam
discursos heterogêneos, e é justamente esses discursos que
nos interessam. Trata-se de saber usar os textos devolutos. Na verdade,
todos o são, pois o texto nada mais é do que um envelope,
dentro do qual colocamos os discursos. Discursos são fluxos de
idéias que habitam as cabeças dos sujeitos caminhantes,
ditando os passos, as condutas, as manifestações todas da
atividade humana. São uma espécie de alimento da alma, e
ditam as condições de produção dos fazeres
sociais e, conseqüentemente, culturais. Alimentam novos discursos,
realimentam-se de novidades e possibilitam a geração ininterrupta
de idéias. Tomar todo e qualquer texto, moderno, concreto, livre,
preso, longo, curto é, para o aldravista, um motivo para tematizar
qualquer discurso com a audácia dos pedintes – batendo à
porta.
Batendo a porta dos discursos estão alguns nomes da poesia em Mariana.
Destaco o recém-premiado no Festival da Livro Aberto, Leopoldo
Comitti, com seus aldrávicos poemas em Fundo Falso e Por mares
navegados; J. S. Ferreira com sua Bateia lírica; Lázaro
F. Silva, com seus poemas avulsos e a sua produtiva tematização
da cultura popular, L. T. Pirolla, Geraldo Reis, Hebe Maria, eu e, claro,
Gabriel Bicalho, aquele de Criânsia (1974), já a “falar
de peixes e de algas, quando nada fala”, de exercícios de
poesia, a quem incumbo a responsabilidade de bater primeiro a aldrava
na porta dos fecundos discursos amorfos, pedindo forma, pedindo cópula,
para fecundarem novos corpos discursivos que perderão a forma e
clamarão por novos rituais de acasalamento.
Se o mar de Fernando Pessoa é a representação do
distanciamento dado às glórias de Portugal, numa tentativa
desesperada de retorno ao impossível, queda-se a “mensagem”
ao mar bravio a engolir o moderno saudosista, oxímoro de apontar
o futuro, olhando para trás; ser novamente glorioso e conquistador
como outrora o foi o Português. O mar de Gabriel Bicalho, porém,
é abrigo da ventura de velejar no mar das palavras, às vezes,
de alguns fonemas, discretos e silenciosos. “Branca vela a cara
vela brinca de leva-e-traz atrás de fonemas num mar de palavras”.
Os 20 poemas que compõem a série marinha de Caravela Vazia
(1996), livro ainda inédito de Gabriel Bicalho, trazem a possibilidade
de se arriscar, de fato, a velejar muito além da pós-modernidade.
É aldrávico esse Gabriel. Observador, sim, mas não
só espectador. Aí ele traça a diferença que
lança a aldrava na poesia. Bater, bater, bater, até que
alguém venha abrir a porta do sentido que se deseja.. Nada ensimesmado,
nada autista, nada fora de contexto como os pós-modernistas de
academia. O elitista “espectador atento” é chamado
a sair da clausura ditada pelo imperialismo cultural das abraliques, das
uebês, das academias, das congressites dos homens e mulheres de
capa preta das ifes e ieés, para se popularizar, sem transformar-se
em bunda, e dedicar-se a “ouvir o mar no marulhar ou ver o mar ao
mar olhar”.
Embora sem pretender superar qualquer tendência, a superação
desse autismo criado pelo endeusamento do sujeito pós-moderno,
desinstitucionalizado para ser servido pelas instituições,
é inevitável, e pode ser pensada na inconveniência
de batidas insistentes das aldravas nas portas imperiais, que não
se abrem para as cabeças interioranas, mas que, por não
se abrirem, distanciam-se tanto do mundo em movimento, aldrávico,
de batidas renitentes, de movimentos de corpos em rituais de acasalamento,
que não há como dizer mais em revisitar o passado, como
querem os umbertos, em parodiar ou ser interlocuções de
minorias, ou ver somente o texto e o intertexto. O aldravismo é
discursivo e interdiscursivo. O discurso da cartilha escolar dos anos
60, da insistência silábica da família “ra -
ré - ri - ró - ru”, toma o discurso da incerteza do
futuro do pretérito, para construir o discurso das possibilidades
ramificadas, próprias do reconhecimento das vozes polifônicas
dos discursos: “ramaria / remaria / rimaria / romaria / rumaria”,
num conjunto de substantivados coletivos, ecos polifônicos das navegações
dáblio-dáblio-dáblio. É a superação
do texto. É a compreensão do mundo dos discursos como negação
da pretensiosa idéia de interpretação. É o
reconhecimento da precisão dos discursos heterogêneos: cabeça
e bunda, Saramago e Coelho, Chico e Tcham, Nélida e Bianca, Jô
e Carla, Rio e Ribeirão, urbes e sertão. Branco não
é branco, preto não é preto. Preconceito não
é preconceito. O discurso pode ser branco ou preto ou os dois ao
mesmo tempo; como o discurso do preconceito pode tornar o branco preto
e o preto branco. Isto é, literatura não é literatura,
mas literatura pode ser literatura, dependendo da vontade de canonização.
(Parece que a última atividade da academia é a vontade.)
Nela, não há vontade de compartilhar discursos. No máximo,
a de receber discursos e dizer-se porta voz autorizado dos discursos canonizados,
ou lugar de canonização. Independente disto, o discurso
faz, desfaz e refaz; alimenta, realimenta e se alimenta de discursos,
numa forma de antropofagia que cuida de cevar a espécie, para se
fartar dela.
Mas, é preciso ainda compreender-se como sujeito. A questão
é transformar a atitude autista pós-moderna em prática
de meditação. Não se trata de auto-ajuda, embora
esta faça parte do clamor social deste início de milênio.
Trata-se de olhar para si, no intuito de construir-se no discursos que
serve, altera comportamentos, perlocutoriamente. Cada prática de
meditação atinge o caos, para recobrar o rumo do barco à
deriva. O piquete das corda do ancoradouro está no peito do outro.
Reconhece-se o valor da convivência. “No cais ou no caos mergulho
em mim mesmo / e agora ancoro em teu peito (porto perfeito) meu barco
à deriva.
Essa atitude de mover-se na resistência do outro, levantar-se de
si na força do peito do outro, não requer a anulação
do outro, nem impõe ao outro a condição de ancoradouro
apenas, sem de longe recorrer ao pedante conceito acadêmico de alteridade,
pois reconhece em si mesmo a mesma condição de suporte do
outro. Ancora o outro e ancora-se no outro, promíscuo na condição
de tocar e se deixar tocar, mas percebe que, mesmo na mais profunda pasmácia,
“algo de alga” existe. Essa alga pega, impinge, cresce, alimenta
e abriga.
O poeta aldrávico é uma espécie de invasor de terra
devoluta. Vai buscar invadir os textos devolutos, disponíveis para
o cultivo discursivo e “um polvo volvo meu povo e me envolvo meu
ovo ao meu povo ou...” abraçar, sem pudores, os discursos
de todas as tendências, acreditando pio o demônio que aquece
e perverso o deus que inventou o inferno.
De qualquer forma, “como um tatuí, tatuando aqui, encafuando
ali”, o aldravismo das margens do Ribeirão do Carmo já
ancora suas caravelas vazias, textos devolutos, noutros portos, para invadir
os discursos transgênicos da geração web.
Põe no mar a aldrávica caravela, Bicalho!
“Claro: o sol na areia clareia!”
SEGUNDO MANIFESTO ALDRAVISTA
(A DECADÊNCIA DAS VANGUARDAS)
J. B. Donadon-Leal
Benditos gestos naturais. Malditos gestos naturais. Ou não.
O tropicalismo restrito e efêmero consumiu-se em si mesmo, mostrando
o óbvio: a elite dá as regras, a elite consome a elite,
adora a plebe rude e pinça um rude, quando em vez, para repercutir
as vozes abafadas na lógica da divulgação, canonização
e perpetuação de esquemas discursivos dos imperialismos.
O tropicalismo tirou guarda algum tempo e serviu nas tropas dos exércitos
da aculturação bestial dos mascadores de chicletes de fã
clube dos tocadores de guitarras elétricas. A elite é cristã
e careta, mas se diz cult e vende a adolescente idéia de cantar
o sexo livre no funk malescrito, outrora proscrito, hoje inscrito na programação
das noites da boa sociedade nacional. O tropicalismo do bom idioma nacional
ficou com os dinossauros de fala mansa e bonita e enterrou, com ele, as
perspectivas de uma nova ordem, em que a rudeza seja só estética,
opção de gozo com palavras e não a falta de alternativa
imposta pelo iletramento e pela pobreza.
Bendito santo nome da poesia. Maldito nome da poesia. Ou não.
Poesia de Vulcano, de Ninfas, de Olimpos, de Parnasos, de Ribeirões
do Carmo, de Itacolomis, de portas abertas bate aldravas desnecessárias.
Um fundo falso compõe o tablado do palco do espetáculo aldrávico.
Fundo Falso é tema e título de livro de poemas de Comitti,
sem data, sem época, sem editor, sem esquema de marketing, sem
escritura de terreno. Mas, Comitti assina a enunciação das
vozes experimentais daqueles que encenam o dever diário da sobrevivência,
num dos poucos territórios livres que ainda há: o da poesia.
Quem dera não ter que sobreviver. Nada mais revoltante que a sobrevida.
Assim mesmo, ele compõe um cenário atávico, não
na automática pintura sobre o pano que pende da altura do palco,
mas na reminiscência discursiva do palco imaginário da realidade
diária, tão presente que não mais percebida, tão
concreta que fluida e inconsciente. O cenário é poesia jogada
na vida escancarada do desnudado teatro, em que as luzes da ribalta impedem
que atores tenham visão da platéia. O ponto de vista a partir
do palco, ofuscado por luzes, é a realidade percebida - está
lá, mas é sombra apenas; responde, mas não tem rosto;
reage, mas não se faz ver em gestos. É a mais lúcida
visão do poder já revelada na poesia. Focos de luz nos atores,
sombra na platéia. São as brumas que ofuscam os olhos poéticos
de Layon na tela de barrocos traços de telhados a encobrirem vida
em movimento.
Que tem a ver essas duas entradas com a aldrava? A porta. Ou não?
Dizer, não dizer ou escolher nem dizer nem não dizer são
possibilidades de escolha possíveis, mas não permitidas
integralmente pelas instituições. As instituições
preferem conduzir algum dizer, preferem calar algo e conceder algo, pois
não irão assumir abertamente que preferem calar todas outras
possibilidades declaradas ameaçadoras. Quem se assume porta voz
do não dizer? Bem o faz a malícia: onde coloco isso? Não
diga, se não... Bem o faz o tabu: tem CA. Não dizer o nome
da doença é não atrai-la. Morre daquilo... Se não
dizer é dizer, então explorar o cesto vazio, a possibilidade
do dizer, o fundo falso, o isolamento dos bastidores é conquistar
o turbilhão de material significante, acessível ou não;
disponível, mas indisponível; real, mas impedido. A porta?
Não dizer. A chave? Dizer, não dizendo. Dizer, simplesmente,
é matar a possibilidade da descoberta. A chave é revelar
a existência do indizível, torná-lo realidade e colher
os discursos de sua fecundidade.
As vanguardas de concretismos, pragmatismos, tropicalismos correram para
a clausura das instituições semioticamente constituídas
pela oficial academia das letras - as universidades do eixo Santos Dumont
/ Congonhas (com todas as ambigüidades locativas), mesmo os paridos
sob a proteção do Senhor do Bonfim. É a aterrissagem
da nave antes da decolagem; é a instabilidade da existência,
a decadência da compreensão com a crença da interpretação,
conforme profecia do pobre Alphonsus: A dor imaterial que magoa o teu
riso / Tênue, pairando à flor dos lábios tão
de leve, / Faz-me pensar em tudo que é indeciso: / Luares, pores-de-sol,
coisas que morrem breve.
Essa brevidade já denunciada no Manifesto Aldrávico, ao
tratar os exclusivismos e a supervalorização do texto como
responsáveis pela decadência de propostas que não
consideram a fecundidade dos discursos e a supremacia do Sujeito, ser
social, plural, como possibilidade e apagamento da prepotência e
onipotência do autor. Aquilo que ruiu foi a empáfia da elite
canora e plumada das academias. Aquilo que ruiu deixa vaga a cadeira a
não ser ocupada pela eleição de um imortal construído
pelo capitalismo de consumo fácil, de tecnologia católica
que tenta adaptar idéias anglicanas; de cartesiano torneando peça
existencialista, de estudos culturais de cd-rom e baba das hostes pós-atômicas
e imperialistas, impondo visão de pena e olhar exótico ao
tênue terreiro, à imaterialização da vela de
sete dias, à indecisão do pajé diante da febre amarela
ou da benzedeira diante de Carlos Chagas.
Benditos palcos naturais. Malditos imperialistas culturais. Ou não.
Os fundos falsos com sonoplastia acústica no encontro de anhagüeras
belos e reais, saltitantes no contraste das areias brancas com as águas
escuras do Abaeté, no período cretáceo baiano médio,
em ondas médias e curtas das estações, entoando sobre
as cabeças os aviões, domingo no parque e voando para London
London, por gentil pedido de um certo gal na voz dela. Sem qualquer relação
com essa história, falando simplesmente de um fundo falso, numa
outra época, já com os anhagüeras fossilizados, Comitti
arranca uma impressão do público sobre um outro assunto.
Ou não? Mas isso é falso! / Nada mais verdadeiro, / sobre
o plástico mar / de acetato.
Somos o público. Luzes no público. Ou não.
TERCEIRO MANIFESTO
(A PROPOSTA ALDRAVISTA)
J. B. Donadon-Leal
Não há que se destruir o mundo concreto, para se postular
qualquer novidade. Há apenas que se acrescentar a noção
de abstrato nesse concreto. Mesmo com a evidente dificuldade que os ilustrados
têm de aceitar o oposto como diferença, igualmente ilustrado,
o mundo se molda na diferença. A produtividade discursiva da diferença
possibilita a existência da democracia, e esta é arma ácida,
afiada e mortal na mão do poeta - enunciatário e enunciação
da diferença. Daí poder entender porque o artista pode subir,
intocado na arte, numa mesma noite, em palanques de adversários
políticos. Ou abraçar um inimigo da corte... Há que
se habitar o mundo concreto sem habitá-lo, povoá-lo e despovoá-lo,
promover a ilusão de ser ou ser a ilusão de promover, para
desabitar as significações. É preciso instalar o
deslocamento das significações, sepultando de vez a ingênua
noção de significado herdada de Saussure, para mobiliar
o não-lugar da discursividade, numa espécie de descategorização
do equilíbrio derivado da labirintite crônica da crítica
que, zonza, produziu o cânone da poesia pós-moderna - produto
a ser negociado no show-room montado nos saguões do shopping center
do saber. Mesmo produto, tem igual comportamento aso cristãos cânones
anteriores - bons e ruins, eleitos e excluídos.
A proposta aldravista é mobília. Ruptura abrupta e radical
com o mundo concreto, aspergindo ácido sobre a pele azul-esferográfica
da terra dos astronautas, para corroê-la, corrompê-la na tez,
na seiva subcutânea, de forma a deixar surgir o monstro revoltado
do vácuo, do vazio, do buraco negro da sanidade acadêmica,
do corpo desidratado do poema ou do frasco do soro que se escoou para
as veias obstruídas pelo colesterol ideológico dos portadores
de sífilis crítica. A mobília nessa sala vazia de
vazios é uma velha carteira escolar dupla, de madeira rabiscada
em sulcos da santidade infantil disposta a ofender o colega do lado, a
homenagear a perna da professora ou da aluna do terceiro ano, a compor
a cola quase impossível, a fazer sexo verbal, a escrever poesia
da mesma maneira com que se come o lanche sem vomitá-lo. Comer
para digerir. Comer para separar proteínas e jogá-las na
energização da atividade poética, mesmo na convivência
com o bolo fecal veiculado pelos intestinos delgados da mídia pós-moderna,
comercializadora de rejeitos maravilhosos dos movimentos do balé
clássico ou do fandango de terreiro.
Se chafurdavam no parnasianismo os contemporâneos de Oswald, se
a história era a de destruir o liberalismo, o cristianismo para
descobrir o homem natural, hoje sabemos que não ser escravo é
ser capaz de sustentar uma proposição de devoração
implacável dos imperialismos sem a intenção de novas
instalações igualmente imperialistas. É devorá-los
sem substituí-los, pois depois de digeridos há que se construir
um vazio, para que os estrumes resultantes possam ser fermentados até
transformarem-se em húmus, estercos das relações
responsáveis nas diferenças. Deverá ser possível
descobrir atualidade nos sermões de Vieira, nos eróticos
rondós de Glaura, nas pedras de Drummond, nos versos musicais de
Coelho, no sangue aldrávico de Ferreira ou nas glosas foneticamente
corretas de Bicalho. A atualidade eterna é a ingenuidade parnasiana
de se fazer qualidade na sombra do monte, ou do pós-moderno na
sombra dos prédios da Paulista, ou da elevada linha vermelha. A
eternidade atual é breve e controlada por radar, com pontos subtraídos
da carteira da longevidade reduzida na transgenia ou na câmara de
oxigênio dos CTIs. Deus seja louvado na nota de um real suja de
hipocrisia e probidade administrativa. Se me é roubada a glória
dos céus, seja-me concedida a graça aranha que tece um rompimento
triunfal, sustentando a partir de então a teia do canto da casa
à aldrava tricentenária que adorna a casa de Cláudio
no Ribeirão do Carmo.
Estava me esquecendo de contar que a aldrava vai completar 305 anos no
próximo 16 de julho. Portanto, para ser aldravista, basta ser eterno
como o sonho árcade da liberdade, com a coragem da aranha de fazer
trapézio na própria baba, dando bananas à academia.
QUARTO MANIFESTO ALDRAVISTA
J. B. Donadon-Leal
O movimento aldravista de arte e cultura completa seu terceiro ano de
intensas atividades produtivas de idéias e abertura de portas para
a emergência de obras literárias, plásticas e musicais
com sua conseqüente divulgação. Mais de um centena
de novos autores foram apresentados ao público nas páginas
do Jornal Aldrava, veículo primeiro do aldravismo, com colo de
mãe capaz de abrigar e aquecer candidato a filho sempre à
hora e lugar. Assim, para que se chegasse a esse número, o critério
de seleção de textos para publicação, o mais
democrático que conheço, sempre se pautou pela simples aceitação
das vontades das idéias e formas, independente de conjunto temático,
mas, às vezes, um ou outro texto fica na fila de espera por absoluta
falta de espaço em uma página do jornal. Dessa forma, o
leitor deste jornal já foi brindado com textos e idéias
de crianças, de adolescentes, de jovens, de adultos e de idosos,
todos escritores até então anônimos, cuja contribuição
muito valorizou o ramalhete de conceitos e discursos que encantou ou gerou
polêmica nas páginas desta democracia aberta pela batida
da aldrava.
Para que este manifesto não se torne apenas um panfleto ufanista,
embora reconhecidamente comemorativo, caracterizarei algumas idéias
aldravistas que devem ser passadas e repassadas para o público
leitor. O primeiro conceito a ser recolocado em pauta é o de reconhecimento.
Reconhecer os mérito dos produtos artísticos que se apresentam
não significa obrigatoriamente ver ou perceber nesse produto uma
qualidade, mas lograr nele um lugar social em que ele é reconhecido
como relevante. Os critérios de avaliação por qualidade
falham nesse aspecto, não dão conta do reconhecimento, pois
descartam produtos socialmente relevantes, mas que não se encaixam
em um modelo acadêmico anacrônico e arcaico. É o caso
das hostes de estudiosos da literatura que insistem em buscar comparações
ou características de Machado de Assis em Paulo Coelho. Ora, ambos
são relevantes em seus lugares e em seus tempos. A virada do XIX
para o XX operava com conceitos de arte que justificavam as incursões
discursivas de experimentação dos fazeres de uma república
nova, ainda frouxa e aprendiz, com uma sociedade urbana pequena acostumada
com os favores e saudosa de um reino que protegia, seus preconceitos e
representações sociais, enquanto a virada do XX para o XXI
é marcada pelo abandono social, a frouxidão de tudo, de
um Estado inadimplente, de uma academia inadimplente e preconceituosa
que quer empurrar goela abaixo um modelo literário morto e enterrado
na primeira metade do XX e que morre de inveja dos “best”.
Coitado, o Coelho virou saco de pancada desses cães de corrida
que ainda operam com os imperialistas conceitos de qualidade, presos a
modelos textuais (claro que nessas corridas os cães jamais alcançam
o Coelho). Esquecem-se de que são os discursos os fundamentos das
obras de arte. A arte de Coelho está na pertinência discursiva
por ele tematizada, a sobrevivência em solidão no meio da
multidão com receituários obtidos na mídia religiosa,
já que a psicanalítica ainda não convenceu a grande
massa e a acadêmica morre mas mal dadas aulas de literatura nas
escolas nacionais de todos os níveis.
Outra idéia avaliada neste Jornal é a cristã-governista
de inclusão. Ora, escola inclusiva, igreja inclusiva são
formas de modelar pessoas e as escravizar nesses modelos, fazendo-as reprodutoras
das formas compulsórias dos fazeres oficiais. Aquilo que não
se aprova no controle de qualidade é descartado. Rebeldes estão
fora, eliminados. Incluir, então, ao invés de ampliar as
chances das pessoas na sociedade as reduz, pois é seletiva e uniformizadora.
Os cristãos querem construir um mundo de iguais, e os governos
desse país dito cristão segue a mesma fórmula mágica,
embora todas as pistas indiquem que a diferença é a marca
dos homens, desde as digitais, o mapa do fundo de olho ou código
genético. O comportamento dos governos e dos pastores não
poderia ser pautado pela dicotomia incluir / excluir, mas pela criação
de diferentes oportunidades aos diferentes, especialmente pelo respeito
às diferenças. Isso reedita a cultura dos favores do início
da República, e dá cotas a pretos nas universidades, dá
cotas a mulheres em partidos políticos. Ora, nem pretos, nem mulheres
precisam de favores para alcançarem os topos das carreiras profissionais.
Muito menos as chamadas minorias precisam se aprisionar em guetos para
continuar fornecendo matéria de matérias de engorda das
contas bancárias de sociólogos, políticos e religiosos.
Na arte, literária ou não, não é possível
se pensar em inclusão ou filiação a modelos engessantes
ou certificação de ISO ou daquilo. A arte é a expressão
da liberdade, em que as diferenças todas emergem com a despreocupação
plena, sabida de que a crítica não irá imputar-lhe
uma tarja de qualidade ou compará-la com uma arte produzida cem
anos atrás em outras condições políticas,
sociais, morais, religiosas, éticas, estéticas; outros preconceitos,
outras interdições, outras censuras. É lamentável
que aquela aberração epistemológica que orienta os
estudiosos e os críticos da literatura chamada teoria literária
ainda opere, como os governos e os cristãos, com os conceitos nefandos
de inclusão e de qualidade.
Outra idéia aqui já desenvolvida, mas que vale a pena reforçá-la
e a da ação antiliqüidificadora do aldravismo. Uma
das conseqüências óbvias da inclusão é
a ação do liqüidificador que tritura todas as diferenças
e faz tudo mesma massa, ou mesma pasta ou mesmo líqüido a
ser derramado às porções aos donos do poder. O modelo
universitário brasileiro é um exemplo disso; é, lamentavelmente,
fabricante de mão de obra, ao invés de ser instância
de produção de idéias. Até os mestrados e
doutorados foram transformados em cursinhos de qualificação
profissional. Não há mais teses, isto é, não
se cobra mais a pesquisa para descoberta ou apresentação
de conceitos novos. As chamadas teses de estudos da linguagem e da literatura
defendidas nas universidades brasileiras são apenas leituras que
reproduzem teorias estrangeiras, ou aplicações de teorias.
Ora, tese é descoberta de teoria. Aplicação é
algo que sequer deveria ser aventado em um nível de doutoramento.
A ação antiliqüidificadora é a de se vislumbrar
novamente a possibilidade de se permitirem pedaços no meio do caldo,
de se permitirem invenções na ciência e na arte e
de se permitirem os conceitos próprios, mesmo que o tempo venha
a destruí-los, mas é preciso enfrentar a ingenuidade dos
ditames oficiais.
Por isso, viva aos leitores de romances de banca de revista, viva aos
leitores de Paulo Coelho e Emmanuel, aos de Despertai, aos de colunas
sociais, aos das colunas esportivas (estes que lêem e ouvem eminentes
jornalistas de gloriosas redes escreverem e falarem olimpíadas
se referindo a um só evento olímpico, portanto a uma só
olimpíada), aos leitores de cordel e aos leitores deste jornal.
Os leitores dos clássicos já são aplaudidos pelos
preconceitos das academias. A estes, minha visita e meu desejo sincero
de melhoras e rápido restabelecimento.
QUINTO MANIFESTO ALDRAVISTA –
Exercícios de Liberdade.
J. B. Donadon-Leal
Neste tempo de narrativas presenciais, em que todos os sujeitos transformam-se
em espectadores interativos e passam a participar dos enredos universais,
seja através das transmissões ao vivo de eventos grandiosos
como uma olimpíada ou um debate entre candidatos à presidência
da república, seja através da visão do horror das
guerras entre nações ou entre traficantes nas favelas, seja
através das novelas, movidos que são ao telefone ou à
Internet para darem opinião, para protestarem, para votarem no
astro do ano, não é mais possível imaginar os movimentos
sociais sem a participação da televisão.
Por mais que se fale numa possível manipulação das
massas, a televisão se apresenta como um veículo de produção
de testemunhas da história, pois todos passam a ver, a presenciar
os eventos. Aquilo que constituía a chave das narrativas: “fulano
me contou que...”, ou “ouvi dizer que...” passa a ser
anacrônico. A nova chave das conversas é: “eu vi na
televisão que...”, ou apenas “eu vi...”. A substituição
do “ouvir” pelo “ver” estabelece a revolução
discursiva feita pela televisão. Não se trata de uma simples
substituição de mote discursivo, mas da criação
de um comportamento testemunhal dos sujeitos contemporâneos.
Uma transmissão de algum evento pelo rádio faz do ouvinte
um refém do olhar do cronista ou locutor. Ele vê e narra,
o ouvinte processa a narração e cria uma possível
imagem daquilo. Antes da popularização da TV a narração
radiofônica era a responsável pela criação
das imagens dos eventos, dos heróis nacionais. Isso se dá
a tal ponto, que mesmo participando do evento, o espectador não
se completa somente pela visão, é preciso ouvir alguém
narrando, e esse espectador leva para o estádio de futebol um rádio
para acompanhar aquilo que ele vê. Trata-se da discursivização
dos eventos. Ver simplesmente não representa a formação
de um sentido. É preciso compreender o contexto e as circunstâncias
do evento e, para isso, o rádio se faz presente, construindo a
história do evento e fazendo falar aqueles que dele participam.
Mas tudo isso ainda parece incompleto, pois o ouvinte é apenas
ouvinte, não é testemunha.
A televisão aparece como solução para esse problema.
Acostumados com o rádio, os primeiros jornalistas de televisão
narravam muito, contavam as notícias, descreviam as cenas, mas
aos poucos passaram a atuar como informantes de circunstâncias e
contextos, para que a imagem do evento pudesse falar por si.
No rádio, um, o narrador, descreve as cenas do evento enquanto
ele se desenrola. Similar ao que acontece nas cenas do cotidiano, após
a ocorrência, todos tecem comentários sobre o fato. Após
o evento, o rádio apresenta o comentarista. Aliás, o comentarista
se notabilizou no rádio. Se no rádio o comentário
do evento tende a se sobressair, no cotidiano, o comentário sobre
os eventos sempre se destacou. Não basta contar a história,
mas é preciso comentar o ocorrido, apontar possíveis culpados,
atribuir responsabilidades, aventar desdobramentos. Daí a admiração
pela testemunha: “fulano viu, ele estava lá.” A testemunha
conta o prestígio da autoridade capaz de desvendar circunstâncias
perdidas no tempo ou de reconstituir o contexto do evento. E as pessoas
de acercam da testemunha para pedir: “e daí, como é
que foi...”; “de quem é a culpa?”; “como
ele estava?”; “o que você acha?”. O narrador e
o comentarista do rádio fazem esse papel de testemunha. O ouvinte
é apenas ouvinte e, nessa condição admirador da testemunha.
O telespectador é testemunha. Se essa condição parece
simplificar as coisas, alerto que não é bem assim. Aquele
que goza de prestígio tem ônus. O ônus da testemunha
é o de ter que comentar em foro privilegiado. O nível de
cobrança é maior. Para a testemunha não basta o desempenho
de contador de história, mas é preciso acrescentar a esse
desempenho a competência de comentarista. A implicação
disso é que todos são igualmente testemunhas. A etapa da
contação da história deve ser pulada. Todos assumem
a atribuição de comentar os eventos.
Esse papel novo criado pela televisão faz com que os sujeitos contemporâneos
sejam proficientes nos comentários. Tão próprio o
termo utilizado na Paraíba para designar os comentários
que se fazem sobre alguém – resenha. Somos todos resenhistas.
A expectativa social é a do comentário. A imagem do evento
é o que move as pessoas para os telejornais. E se essa imagem fazia
as rodas de comentários, os temas das conversas no trabalho, nas
rodas de amigos, na falas familiares, a televisão abre esse desejo
de resenha para o instante do evento, e joga o comentário do telespectador,
seja lendo sua pergunta ou comentário enviado pela Internet ou
por telefone.
As encenações teatrais gozam o privilégio sobre as
outras artes de fazer testemunhas. O público do teatro é
testemunha de um evento. Após a peça apresentada, reta ao
público o exercício do comentário. Não o comentário
de algo apenas relatado, mas de algo visto. É este também
o impacto do cinema. O público é testemunha, não
é apenas ouvinte ou leitor de relato. Teatro e cinema são
extensões da pintura, do registro visual do evento. Mas todos continuam
restritos e para públicos restritos. A massa continua a ouvir fragmento
dos recontos dos eventos e fragmentos de comentários. A televisão
abre a oportunidade de criar multidões de testemunhas.
Se parece aos olhos do leitor deste jornal que traço uma defesa
explícita da televisão, que trilho em rumo contrário
ao dos educadores, observo apenas que defendo a vida como exercício
de liberdade. Parece-me que os educadores não se atinaram para
o fato de que a sociedade atual é constituída por testemunhas,
graças à televisão. Cabe aos educadores a tarefa
de esmerilar essas testemunhas, dando a elas competências de comentadores.
Por isso, não faz sentido, por exemplo, na escola, uma disciplina
chamada Língua Portuguesa. Os alunos chegam à escola proficientes
em Língua Portuguesa, falantes de Língua Portuguesa, embora
da língua pragmática, de uso; eles precisam de aulas de
gramática, para compreensão dos mecanismos de organização
dos discursos, dos sistemas lógicos envolvidos na estrutura dos
textos e dos jogos argumentativos sustentadores dos comentários.
Assim como não faz mais sentido falar daquilo que o ouvinte já
sabe, pois a massa é constituída de testemunhas dos eventos,
não faz sentido a escola ensinar aquilo que os alunos já
sabem, a língua desses alunos. A escola tem que ensinar aquilo
que os alunos não sabem, a gramática da língua e
a estrutura das instituições discursivas, por exemplo, para
que a sociedade possa recuperar aquilo que perdeu, o brilho da língua
ou a capacidade de comentar.
A sociedade atual fala e presencia os eventos. Se alguém sentiu
falta do “escreve” no enunciado anterior, isso foi de propósito.
Falta a ela a preparação para as estruturações
das coisas. Falta gramática, por exemplo. É triste ouvir
a música desses grupos jovens, tal a demonstração
de desconhecimento gramatical ou de falta de estruturação
de texto. Ser livre não é levar a vida aos trancos e barrancos.
Ser livre é conseguir expressar livremente o pensamento numa forma
compreensível. Há quem defenda por aí prédios
como patrimônio histórico, mas não defende a gramática
da língua como patrimônio inalienável. As mudanças
gramaticais são sutis ao longo de nossa história e são
marcadas por perdas e raros acréscimos. Perdemos a segunda pessoa
do plural, as formas compridas do particípio abundante, a mesóclise,
a observância da pessoa do discurso – ou tu, ou você,
perdemos os pronomes relativos preposicionados e o cujo. Ganhamos aquilo
que é previsto na gramática de qualquer língua –
léxico, ou por empréstimo, ou por criações.
Talvez ganhemos a gramaticalização do gerundismo, tamanha
a insistência do “vou estar transferindo sua ligação”
dos operadores de tele-marketing.
Claro, quase que me esqueço das testemunhas criadas pela televisão.
Acontece que essas testemunhas restringem-se ao reconto dos eventos veiculados
pela televisão; são incapazes de organizarem comentários.
Faltam-lhes recursos argumentativos, faltam-lhes estruturas textuais e
discursivas. Estes e estas devem ser dados pela escola. Se meus ouvidos
têm que suportar frases da música popular como: “se
a mulher que eu nasci pra viver não me quer mais”; ou “sonho
que eu jamais quero acordar”, é porque perdemos o que de
mais importante tem uma pátria – a escola. Isso tem muito
do que se entende por variação lingüística ou
dialeto. “Nóis vai”, “nóis foi”
não caracterizam dialetos, mas falta de escola. Isso não
é variante lingüística, mas erro de linguagem derivado
da histórica falta de escolas e de escolarização
deste país. Os dialetos são marcados por um léxico
característico, por uma fonética específica e por
um estilo regional, não pelos erros resultantes da falta de estudos.
Se somos testemunhas da história, se as imagens dos eventos chegam
aos olhos de todos, é obrigação do Estado e dever
de todos os professores ensinar bem a estrutura da língua pátria,
para que todos os sujeitos desta sociedade brasileira possam exercer a
liberdade de opinar, sem as marcas e estigmas da falta de escola. Quando
esse país deixar de lado o discurso demagógico do “para
todos” e o discurso hipócrita de que a fala cheia de erros
é bonita e deve ser respeitada, a muleta de justificar a incompetência
dos professores de gramática, vestidos de professores de língua
portuguesa ou de língua nenhuma, pois nada ensinam, pois tudo é
certo, cairá, e os professores terão que assumir a responsabilidade
de ensinar aquilo que pode levar a criança ao domínio irrestrito
das estruturas da língua, para, de posse desse domínio,
exercer a liberdade de abrir a boca e falar, tomar papel e escrever sem
nenhum tipo de constrangimento.
Se é pra valer a Carta Constitucional brasileira, a escola é
para todos, e o direito de domínio irrestrito da língua,
para além de suas funções pragmáticas básicas,
também é. Falta os professores entenderem isso, para assumirem
o papel de ensinar as regras do jogo, e a regra é clara –
quem viu é testemunha, quem é testemunha tem que comentar,
mas para comentar tem que saber mais do que viu. A escola tem que dar
esse “mais”. Televisão não é educativa,
escola é. A televisão já mostrou para que veio. E
a escola?
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