Jornal Aldrava Cultural
A Poesia de Márcio Almeida

 


Márcio Almeida

Márcio Almeida nasceu em Oliveira. É formado em Letras, com curso de Especialização em Ciências da Religião, mestre em Literatura. Professor universitário. Membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore. Verbetista da Enciclopédia Barsa. Criador, com Hugo Pontes, do Grupo Vix, em 1963. Criador do Movimento de Resgate do Autor Inédito e Anônimo. Autor de 39 publicações. Detentor de dezenas de prêmios nacionais de Literatura, entre eles: Prêmio Emílio Moura, Cidade de Belo Horizonte, Fundepar, Cruzília, Nova Friburgo. Jornalista profissional, ex-assessor de imprensa do Palácio das Artes, IEPHA, Secretarias de Estado da Habitação, Utramig, Emater. Crítico literário desde a Década de 70; colaborador do Estado de Minas, Suplemento Literário do Minas Gerais. Atualmente, publica com regularidade em várias revistas eletrônicas de Literatura, como poeta e crítico, entre elas, Cronópios, Germina, Tanto, Recantodasletras, La Trastienda. É supervisor Cultura e assessor de Comunicação da Cidade de Carmópolis de Minas.

Autor dos livros: Lavrário, Assassigno, Previsão de Haveres na Terra do Puka, Orwelhas Negras, Oficina de Nomes, Mel Perverso, Paixão, Antologia Poética II (esta junto com Antônio Barreto, Geraldo Reis, Paschoal Motta e Ronald Claver); Doce Veneno, Lápis Impuro; infanto-juvenis: WHYK, É Isso aí, Bicho! O Céu é um Zoológico, Minha Escola é Sopa, Hoje é Dia de Rock, entre outros. É traduzido na Argentina, México, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Uruguai, entre outros países.



As presenças impuras

Por que fica uma palavra
perdida, sem função, a mais,
a apodrecer a lavra
do poema com um mas?

Que pensar permite o ruim
na surpresa da emoção?
Por que, se rígido, o sim
condena à exceção?

É desse consentir o erro
que a poesia faz sua função:
ser o sujeito da falta,
semente do nada, paixão?

Por que tantas perguntas,
dúvidas latifundiárias,
se a poesia é coisa junta
de seus exemplos e párias?

Se não existisse, a poesia
faria alguma diferença,
ao fundar signos de pia
com seus ócios e ciência?

Mas o que fundar num tempo
alvo de pleno desígnio,
o universo a vão do vento,
a filosofia do signo?

A contradição,a profecia
belomaldita da vida,
paródia, secular via
já do que antes era dúvida?

A poesia serviu ou servil
à semelhança do criado
serviço de linguagem – fio
fundo a destino do dado?


Ossos do ofício

O poema tem por função dar prazer,
ser a crítica de si mesmo, matar a fada,
o direito de sentir e de não ser,
promover a recepção do nada.
E dito assim – malícia natural,
que de tão óbvio é de si estranhamento,
voz que vê fundo numa forma de coral,
ritmo que pensa e faz festa de momento.
Trazer para fora o que é preciso não dizer,
que é “dito, dado, consumado”, tudo.
restam o diálogo e a memória do escrever,
a escritura que reinventa o seu futuro.


Ritmo

O que mais atrapalhou foi o seu melhor:
a logopéia que dançou o seu sentido,
metro musak, diálogo de condor,
palavra ao pé do verso, letra de ouvido.

Culpa sonora esse opus para surdo,
em que o soneto piora a forma mais tribal,
mais menestrel que imagina o absurdo,
coisa de rua , assovio, voz geral.

Pois é esta forma de falar que fala
coisas dançadas em pauta de papel:
teoria do sentir que se dá e cala

para ouvir outras vozes e assopros
plugados, todos, nos fonemas da babel,
rastros sonoros, tropicaliente, corpo.


Inexistente imprescindível

Enfim, o que conta é o saber que incomoda.
A fronteira do outro lado,
a ilusão consciente de haver algo-começo,
um certo conforto para a resposta
que não voltou – ainda – como disse.

A falta de um corpo vivo
como prova de existência alimenta o imaginário.
Não houve nem haverá futuro
para o que nunca existiu.
Contudo, pleno.
O que passa é o homem.
O eterno não dura.
Ele não é o que habita a própria criação.
É a criação.
Deus não é uma explicação.
O dado é Outro.


Os mistérios dos nomes

Vários viajantes registraram esse inconveniente da mudança de nomes.
Waldemar de Almeida Barbosa – O caçados de esmeraldas

Como as pedras, os nomes
têm mistério, história e fremem:
o bandeirante é Fernão Dias Paes,
não Fernão Dias Paes Leme.

Como as pedras, os nomes
também viram um angu:
Sabará de Aleijadinho
não é Sabarabuçu.

Como as pedras, os nomes
trocam de amor e de santo:
o arraial de São Pedro do Paraopeba
não é a Vila de Santana do Paraopeba,
outro canto.

Como as pedras, os nomes
evocam sutilezas estrias:
Ivituri significa
Serro Frio – Serra Fria.

Como as pedras, os nomes
têm o condão de uma fada:
Vupabuçu é mais antes
uma Lagoa Dourada:

em Itacambira, Itamarandiba,
Montes Claros, Teófilo Otoni.

Como as pedras, os nomes
vão aos trancos e barrancos.
para o bandeirante marrões são porcos,
patos, os solavancos.

Como as pedras, os nomes
engodam as suas caldas:
turmalinas do Sumidouro
não são febris esmeraldas.


Toques de Alba

- Pai, é muito chato esse seu vai e vem,
é pouco o seu amor fim de semana,
órfãos de sua ausência, do seu amor, reféns,
lhe falta só na vida ser bacana.
Ousar pôr a nu a sua infância,
ouvir que a gente cresce rapidinho,
eu já sei ler, faço perguntas de criança,
belo: os primeiros passos do Ponguinho
que já morde, quebra peças do folclore,
destrói a casa e quê fascínio por tomadas!
Vamos lá, presença provisória, i`m sorry:
a gente quase se despede na chegada,
a nossa mãe já ama a solidão,
inventa um pai que de ausente é miragem,
que a gente vê de susto, 2ª mão.
E tutaméia de presença é sacanagem,
é muito chato, pai-estrada, e implica
ficar mais só a dois, quando te vejo.
E a gente moendo por dentro: - pai, fica,
e você indo embora: - Te amo, beijos.

(do livro Lápis Impuro – 2000 – Bh)


G- anchos

A quantas vão os mantras
a quantas a quântica
quantas antes de Dantes
há quantos sânscritos
quantos íncretos
quantos Sanches?


POUNDeração

De minuto
a minuto
de mim nutro
diminuto.


Matracas

Matracas são maracas sacras,
gritos para dentro, agônicos
estalos secos, vozes magras
de luto, motetos monotônicos.

Avisos de que suas carcaças
arremedam a paixão do horto.
A eternidade está sem graça.
Deus é a vida. E está morto.


Trovinha

A gente tem de se amar
duas vezes mais:
porque somos diferentes
e porque somos iguais.


Solidões habitadas

Predadores do silêncio
conspiram fatos isolados
nos intervalos da memória.

Noite mostarda na saliva
palavrantena sonolerda
apatias triviais na poltrona
dessossada
fio dental pendular
na masturbação da gengiva
ajantarada
cães em ócio
gatos escaldados de tédio
tevês iguais em nada
família desconsertada
como a gafe e o susto
a surpresa e a pressão
renitente na ponta do cigarro
no ranger da porta
nas contas a pagar.

Canções ensaboadas
e um modess enrolado
com pequenos anúncios
no lixo do domingo.


Instalações pós-modernas

Palitos perfilados nas gretas sebosas
de mesas boêmias como pedras lêmures
ou triângulos das bermudas morenas
roçando o pé na perna do desejo em frente.

Tampinhas arranha-céus
desafiando o equilíbrio bêbedo.
Rótulos de cerveja nos tetos de plantão.
Poemas escritos no verso de contas
do Lua Nova, Pomar Mineiro e do Saloon.

Uma pedra renal só unhas roídas.

As casas de papelão dos avatares públicos
e suas piras de gravetos cheirando a maçã
na fumaça erma.
Endereços jogados fora em maços de cigarros.
O aviãozinho do folder de encarte da Mesbla
em vôo cego rumo ao trânsito dos pneus.

Um trevo de quatro folhas
numa página qualquer da bíblia de Marx.
Uma boca de batom no guardanapo
que nunca mais se viu tão rubra de tesão.
Nomes escritos com farelos de pão
sobre toalhas na rotina do morim.
Os biscoitos enrolados pelo sestro
com mechas de cabelos oleosos.
Calcinhas esvoaçanhadas
nos jiraus próximos por binóculo-voyeur.


O corpo é um quintal

Maçã do rosto
Batata da perna
Manga da camisa
Cabeça de mamão
Olho de jabuticaba
Cara de banana
Cabelo de milho
Rubor de pimentão
Hálito de cebola:
- Moça, você é um chuchu!
Mas não resolve meu pepino
e escorrega como quiabo.