Jornal Aldrava Cultural
Aldravismo

Publicado no Jornal Aldrava, Ano 1, nº 02, Dez/2000, pág. 07.

O poeta é um traidor

 

J. B. Donadon-Leal

Como acreditar na sinceridade dos enunciados poéticos? Na voz austiniana, não há como conferir a sinceridade dos atos de fala, mesmo quando os parceiros de comunicação estão frente a frente. Que dirá do poeta? Este... tão distanciado do corpo empírico do sujeito que o sustenta num corpo empírico desafia o tempo cristão, com início e fim, para dizer da vida além do juízo final. O poeta não se confunde com o autor do texto da poesia, marcado pelo presente, pela fragilidade advinda da praga de Lavoisier - nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Isso produz a conformidade cristã. O poeta é Locutor, é algo fluido, é a forma amorfa que não se constata senão na realidade poética, exclusivamente discursiva, instância de criação, de traição e não de mera transformação.

Gentes há que buscam explicar a poesia entranhando-a na vida privada de quem a pariu. A Pilot, a Remington, o Microsoft, a mão de um corpo em carne e osso nada mais são que instrumentos de algo que se acostuma acontecimento na vida social, e não superam o Tissot de meio metro de corrente de ouro a sair do bolso de fazer uma curva sobre a coxa esquerda, dizendo do tempo da poesia como dissimuladora de conceitos vivos nos sistemas, principalmente nos que organizam os relacionamentos passivos das pessoas. Sendo assim, a poesia é autônoma e independente no desafio que impõe aos que se dirigem apenas pelas normalidades da miséria na vida cotidiana.

É compreensível não eleger Drummond como mineiro do século, pois ele não é de Minas, ele é do mundo. É compreensível não eleger Rosa, por ser-tão de Minas e minas inesgotáveis de casos. Compreensível não eleger o rei, por ser dos santos, do cosmos. Não eleger Juscelino, por ter sobrevoado Minas, transportando a capital federal, ou Dumont por alçar vôo em Paris e algemar o tempo. Ou não eleger o outro por ser apenas irmão do Henfil, ou o jurista por ser de lei, o médico por ter inventado mais uma doença a se somar às chagas de Minas e o compositor por ter afrontado o hino nacional, compondo um concorrente. Mas, é lamentável que o fim do século só veja o fim do século; menos que isso, só o umbigo do fim do século.

A data da divulgação de uma eleição do mineiro do século coincide com a data da República. Nada mais lamentável do que constatar que os mesmos relacionamentos de favor que regiam o comportamento social do país na primeira década da instauração da República elegem o favor como representante do século em Minas. São cem anos sem aprendizado. São cem anos de espera da providência divina. É o retrato do subdesenvolvimento castigando ainda as mentes caladas e carentes de Minas.

Salve a literatura de auto-ajuda! Salve a literatura das mazelas da alma! Salve a literatura do século! Aquilo que aspira algo mais que o sofrimento dos tortos paus do cerrado; aquilo que aspira algo mais alto que a Serra da Piedade é traição aos desejos de Minas - o confinamento à mendicância. Drummond não mereceu nem a votação que teve, pois traiu o magnetismo da ferrosidade daqui, traiu a língua daqui, traiu as sombras daqui. Inoxidável, povoou as almas do mundo, não de Minas, com todas as fórmulas de traições às normas constituídas, para que o mundo, não Minas, não precise mais de mãos estendidas às providências divinas, (qualquer aliteração é mera coincidência) por contingência da pobreza, em todas as suas acepções.

É redundância dizer dos poetas inconfidentes. Saudável trair. A traição do poeta não pode ser confundida com delação. Silvério delatou. Drummond é da linhagem de Tomás e Cláudio, traidores, graças a Deus, para que dos ribeirões do Carmo de outrora não bateiem mais as cestas básicas de fome que constróem os salvadores da pátria, os messias, os conselheiros, os josés marias... enquanto os quintos do ouro do inferno continuam a brindar champanhe nos palácios.

No meio do caminho tinha uma pedra. Parece que ninguém se incomoda com isso.


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