Paulo
José Cunha é jornalista,
escritor e documentarista. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, TV
Verdes Mares e TV Globo. Autor de “O Salto sem Trapézio”,
“A Noite das Reformas”, “A Grande Enciclopédia
Internacional de Piauiês” (reeditado três vezes),
“Vermelho - Um Pessoal Garantido” e “Caprichoso -
A Terra é Azul”. É Professor concursado da Fac.
de Comunicação da UnB, onde dirigiu o Centro de Produção
de Cinema e Televisão – CPCE. É autor do documentário
“O Passageiro Precioso”, premiado em 2003 com o 1º
lugar na Mostra Nacional do Vídeo Universitário da Universidade
Federal do Mato Grosso. No momento, prepara a edição de
“Perfume de Resedá”, poema longo iniciado em 1984
e concluído em 2006. Está concluindo a realização
do documentário “Brasília torturada”, sobre
a repressão política na Capital Federal durante o regime
militar, e “A violinista que subiu ao céu”, documentário
que aproveita a história de um assassinato cometido no início
do século passado num clube de luxo de Manaus para resgatar detalhes
do “ciclo da borracha” na Amazônia. Atualmente é
jornalista concursado da TV Câmara, de onde já foi diretor.
Mário
ama Waleska
Eu te perdôo, Mário, por exibires ao mundo o teu amor por
Waleska no muro da comercial da 312 norte, perto do açougue cultural
do Luiz T-Bone. Eu te perdôo por desenhares mal as letras do teu
amor, por inundares a cal do muro de amor, por anunciares aos passantes
tão atribulados o triunfo do amor. Eu te invejo, Mário,
por não ter, como tens, a coragem de sair sorrateiro como um
ladrão e, na calada da noite, escolher a tela mais imaculada
para depositar sobre ela o beijo alegre do amor. E também te
perdôo, Waleska, por seres tão amada e tão feliz.
Sim, eu te perdôo por seres feliz, Waleska, eis que a felicidade
é crime hediondo nestes tempos em que os muros se cobrem de cacos
de vidro e estampam mensagens de terror e medo.
Já
a ti, Marciano, líder dos Ratos de Satã, não te
perdôo. Não te perdôo por invadires com o rancor
do teu spray todos os muros e paredes, postes e out-doors, ruas e avenidas,
rebocos e paredes de tijolo aparente da cidade ingênua ainda,
assustada com os primeiros arranha-céus que vão se erguendo
nas satélites, e saltam do chão às nuvens. Pois
não te dou o meu perdão, Marciano, ah, jamais te perdoarei!
Porque trazes no jato do teu spray o tempo anêmico, a pestilência
do vício, a morte do amor. Não te perdôo, lobo da
treva, por delimitares o território do teu vício com o
mijo do teu spray. Não te perdôo por estenderes o manto
negro do futuro sobre este tempo já de si tão miúdo
que mal resiste ao presente.
Eu
te perdôo e saúdo, Waleska, por seres a cúmplice
de Mário no crime de se sentir amada e o peito “palpitar
macio de pétala ou de asa abandonada”, no dizer suave do
poeta H. Dobal. Eu te perdôo e saúdo por teres sido tocada
pela ousadia do amor de Mário, que nem sei se menino ou velho,
mas decerto belo, altivo e decidido no desenho infantil com que desnudou
o coração.
Ah,
Mário, Mário, eu te perdôo. Te perdôo e te
invejo por trazeres luz ao escuro das ruas, ao espargires o perfume
do teu amor aos transeuntes, por anunciares a vida renovada no fogo
da paixão. Te perdôo por partilhares teu amor, por o proclamares
pelos muros, por fazeres corar a doce Waleska. Te perdôo e ofereço
a ti e aos desesperadamente amantes como tu os muros mais alvos da cidade,
principalmente os recém-pintados, cheirando a tinta fresca, bons
para serem cobertos de mal-traçadas mensagens de amor. Pois te
ofereço todos, inclusive os muros alheios, correndo o risco de
ser punido por dispor do que não é meu, para que neles
declares o amor e resgates das trevas o lume da esperança.
Confesso
que tenho medo de ti, Marciano Gosma, tu que agrides o frescor das manhãs
com teus enigmas malignos. E por isso te condeno à dor de nunca
teres o amor das Waleskas, Angélicas e Helenas, o amor de todas
as Elizetes, Claras e Marias do mundo. Tu, Marciano, que escalas os
prédios mais altos para ruminares teu ódio, pobre de ti!
Pobre de ti, tão audaz no anúncio da opressão e
tão condenado à danação eterna de permanecer
covarde na proclamação do amor que desconheces, amor como
o de Mário por Waleska, que ornamenta e alegra os muros da cidade
ingênua.
Eu
te perdôo, Mário, por perdoares Marciano, por seres a letra
insegura que proclama a alegria dos que amam. E que, por amarem e serem
humildes, herdarão a terra e os frutos da terra. Eu te perdôo
e saúdo, Mário, tu que sem saber soubeste que o amor será
sempre eterno como o negror das madrugadas onde Marciano oculta seu
ódio. Que o amor será eterno nas noites em que os amantes
de todas as eras, embriagados de luar, anunciarão com letra tímida
o triunfo da ternura sobre o medo. Que mesmo findo o dia, terá
sido eterno o amor, porque são eternos todos os amores, mesmo
os mais fugazes.
Pois
acreditai todos os que me escutam, acreditai em mim, pois anuncio que
alguma coisa eterna fulge na escuridão da noite! Correi, correi
todos a ler no muro da 312 Norte, antiga vila do Vietnã, perto
do açougue do Luiz que vende carne e cultura, que Mário
ama Waleska. Ide e proclamai aos mansos de espírito em todos
os cantos da terra que o amor de Mário por Waleska é o
sinal que faltava para que todos os homens e mulheres deste mundo acreditem
que ainda resta uma esperança.
21/09/2008
Só
pelo prazer maldito
Paulo
José Cunha
.
Porque
já tiveste sede
e andavas pelas paredes
um dia te confinaram
no fundo de uma prisão
Mataram
García Lorca,
calaram a voz de Torquato,
sumiram com Maiakovski,
por escreverem palavras
que andavam de mão em mão.
Depois,
juraram de morte
o autor dos versos satânicos
que afrontaram o alcorão.
Correste
para os botecos,
poesia marginal,
só os boêmios te ouviam
fugitiva, flor do mal.
|
Tu
és feita de palavras
mais frágeis do que a brisa,
mas eles morrem de medo
só de ouvir o teu nome
pensam que és poderosa
e fazes revolução.
(será
por isso que um dia
esmigalharam os tótens
que a mão sutil de Gougon
fez erguer na contramão?)
Agora
moras no piso
da cidade que te acolhe
e apenas sentes os passos
do pedestre cidadão.
És a palavra mais pura
que alivia o dia-a-dia
na luta do ganha-pão.
Mas
não te iludas, poesia!,
do jeito que as coisas vão
só pelo prazer maldito
de fazer calar teu grito
eles vão achar um jeito
e vão derrubar... o chão.
|
Esta
danadíssima Andréia Danadon
Se não fosse poeta, Andréia Donadon seria diretora de
videoclips. Pois os poemas de seu primeiro livro-solo, “Cenário
Noturno”(Ed. Aldrava Letras e Artes, 2007, Mariana, MG) 115 págs.)
não passam de roteiros visuais para uma abordagem caleidoscópica
do mundo (dela). Desde a primeira linha não esconde de ninguém
sua admiração pelo espírito da poesia japonesa.
E esse traço parece dominar toda obra, de cabo a rabo, mesmo
que os poemas, em sua maioria, fujam do padrão do haicai definido
por Bashô. Para o mestre japonês, um haicai para ser perfeito
teria 17 sílabas divididas em três versos de 5, 7 e 5 sílabas,
com alguma referência à natureza, e com a “ação”
se passando no tempo presente.
Andréia não respeita nenhuma das regras de Bashô,
mas é só olhar direito que a gente encontra o espírito
do haicai dissolvido em seus poemas, mesmo nos mais longos. Recheados
de imagens visuais (ela parece odiar verbos), é uma poeta que
privilegia menos a mão que escreve palavras e muito mais o olho
que vê. É uma poeta de observação. (Só
depois de escrever todo este texto dei-me conta de que é artista
plástica premiada. Bingo!)
Muitos dos que se aventuram no terreno da poesia “ajaponesada”
quebram a cara por limitar o alcance do poema à forma consagrada
pelos mestres da terra do sol nascente. Coitados. Pensam que fazer haicai
é cumprir a métrica e estamos conversados. Quando se sabe
– e alguns brasileiros são mestres nessa arte complicada,
como é o caso de Paulo Leminski e Aníbal Beça –
que haicai é apenas um delicado “caminho” do olhar
(aqui entendido como percepção visual ou afetiva). Às
vezes, a métrica que se dane. Nós não somos japoneses
nem nada...
A moça Andréia passeia com desenvoltura pelo “caminho”
de suas imagens. Será então que escreve poemas sem poesia,
ou sua poesia é dura e seca? Pensa assim quem não percebe
a graça escondida no interstício das palavras. Um exemplo?
É pouco. Cito vários, desde o primeiro poema do livro,
“Poeta de papel”: “à noite/ abandono carne
e osso/e/ visto no corpo/ um barquinho de papel”. Com seus “happy
ends” desconcertantes, a poeta mineira quase derruba a gente da
cadeira quando escreve um poeminha delicioso como “Invasão”
(preste atenção no último verso): “a noite
carcomeu/o dia/:/abrupta/picou no céu/cacos de luz”.
E pra finalizar e deixar o leitor com água na boca, este outro,
“Libido” cuja idéia ela me usurpou, pois eu tinha
certeza de que um dia o escreveria. Como vacilei, perdi tempo e ela
não, coube-lhe a primazia de escrevê-lo, e eu, de apenas
admirá-lo, invejoso:
“beija-flor”
beija-flor não beija
penetra bico pontudo
na rosa estática”
Como diz minha querida Linda Lucinda,
tem gente que nasce poema
(ou nasce com o dom),
como esta danadíssima
Andréia Danadon.
Salão
do Livro do Piauí
ou
Adeus, Salip?
Primeiro,
Ignácio me fez rir. Depois, Thiago me fez chorar. Soube que Frei
Beto havia ensinado na véspera que, se não há o
que dizer, é melhor não escrever. Edmar Oliveira mostrou
a genialidade escondida nos delírios dos doidos do Instituto
Nise da Silveira, no Rio de Janeiro. Washington Novaes e sua voz de
caverna me fez temer pelos destinos do planetinha azul que nos acolhe.
E eu me diverti botando o espelho, ou melhor, o piauiês, na frente
de todos, e todos se viram refletidos no espelho de suas palavras e
expressões, e riram de si mesmos, e se orgulharam de ser piauienses,
e de ter uma linguagem especial que os define.
Todos
os palestrantes, de Ignácio de Loyola Brandão, Domício
Proença, Thiago de Melo, Alberto da Costa e Silva a Sérgio
Natureza, Salgado Maranhão, Márcio Souza; do cubano López
Sacha ao norte-americano Stephen Bockskay, passando pela ginga do violão
de Guinga e pelos dós, rés e mis de Rosinha Amorim e Vavá
Ribeiro, de todos eles ficou um pouco. E o Salão do Livro do
Piauí colocou mais um tijolo em nossa auto-estima. Foi muito,
muito bacana! Porque, convenhamos, realizar um Salão do Livro
em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul ou em Paraty, no Rio de Janeiro,
com verba gorda e cachês generosos, é uma coisa. Outra,
bem diferente, é fazer um Salão do Livro no Piauí,
contando apenas com a capacidade de multiplicar um real por mil sorrisos,
um gordo cachê pelo “muito obrigado” dos ilustres
palestrantes que se jogaram de suas terras pelo prazer da convivência
com pessoas ávidas por ouvir, e por isso aproveitam com atenção
cada vírgula que escutam.
Já
é o terceiro ano que participo, e a cada edição
mais me emociona ver nos olhos da moçada que aflui em massa ao
auditório do Centro de Convenções de Teresina essa
vontade inexplicável de ver, sentir, participar, conhecer –
saber. Tietagem? Claro que tem. Ora, se tem em Passo Fundo e Paraty,
por que não teria em Teresina? Holofotes sobre os famosos? Autógrafos?
Frescuras em geral? Óbvio badalante. Na sociedade do espetáculo,
onde existir fama existirá tietagem. E veja que isso não
chega a ser ruim: prova apenas o apreço do povo aos artistas
e escritores, e o agradecimento pelo trabalho de quem cria e produz.
Sim, irritei-me um pouco com uma certa banalização das
palmas, que surgem do nada, a cada pausa do palestrante. Cópia
do que ocorre nos programas de auditório da tv, onde a manada
de espectadores é adestrada a plantar uma mão na outra
toda vez que um letreiro luminoso, acima de suas cabeças (que
os de casa não vêem), se acende e determina: PALMAS!
Mas,
e daí? Como diria Paulinho da Viola, “as coisas estão
no mundo, só que eu preciso aprender”. Que batam palmas
e pequem por excesso. Pior seria não baterem, inibindo os oradores.
Nesse pique, o Salão do Livro do Piauí já não
aprende – ensina a arte de transformar penúria em riqueza
cultural, converter dificuldade em força, adversidade em alegria.
O Salip ensina, sim senhor, como fazer um milagre. Ou vários.
Como é que eles fazem isso? Respondo em bom piauiês: dois
cu véi que não sabe.
Os
maestros do espetáculo, Wellington, Cineas, Nilson e Romero,
mereciam estátuas pelo que vêm fazendo em prol da educação
e da cultura do Piauí. Melhor esquecer: não aceitariam.
Sabem que os pombos sempre cagam nas estátuas, como também
sabia o querido H. Dobal, que este ano cometeu a descortesia de não
comparecer, alegando motivos superiores. Fez uma falta danada.
Agora,
gostoso mesmo era observar o carinho e a curiosidade com que a molecada
das escolas que compareceu em peso ao Salip se relacionava com as obras
expostas pelas livrarias. Logo eu, que me acuso de ser fotógrafo,
fui esquecer da máquina fotográfica justo no dia em que,
ao passar por entre os stands, vi uma cena inesquecível: cinco
meninas aí por volta de seus 10 anos, espremidas num único
banco, alheias ao alarido m volta, cada uma lendo atenciosamente um
livro. Pareciam ensaiadas para uma foto-síntese do Salão,
boa pra virar out-door. Deve ter sido coisa encomendada por esse diabo
branco que além de diabo é doido, brabo e malcriado, e
atende (quando atende) pela alcunha de Cineas Santos.
De
volta a Brasília, só me resta um agradecimento pelo convite
e pela oportunidade de mais uma vez me deixarem ir a Teresina (como
bem ressaltou Edmar Oliveira, voltar a Teresina é fundamental
para o reabastecimento das baterias de piauienses exilados, como é
o nosso caso). E uma reclamação aos poderes constituídos.
Considerando que o Salip tornou-se um dos mais importantes cartões-de-visitas
do estado, é bom tomar algumas providências, todas urgentes.
A primeira é destinar o dobro, o triplo, quem sabe o quádruplo
(e ainda será pouco) de recursos para sua realização,
a fim de melhorar a infra-estrutura, a divulgação, as
atrações, tudo. A segunda é mandar realizar uma
ampla reforma – quem sabe uma ampliação –
do Centro de Convenções, onde o Salão acontece
– ou melhor: se espreme. Não foram poucas as reclamações
que ouvi, em razão das poltronas estragadas, dos equipamentos
obsoletos, da precariedade do som, do aspecto geral de abandono. Um
Salão do Livro que recebe figuras da estatura intelectual como
as citadas, precisa cuidar para que essas pessoas saiam de lá
com uma boa impressão da gente. Até hoje, que eu saiba,
ninguém reclamou das condições precárias
do Centro de Convenções. Nem tocam no assunto, só
escrevem elogios. Agem assim, com certeza por educação,
ou extasiados por terem assistido ao vivo a alguns milagres.
Advertência:
Cineas, Nilson, Romero e Wellington já provaram que conhecem
o segredo de Fátima. Como não estão atrás
de canonização, um dia podem encher o saco de tanto fazer
milagre.
E
aí, adeus Salip.
H. Dobal já me puxou a orelha
“É
da casa do ‘poeta’ Paulo José?” Engasguei quando
ouvi, do outro lado da linha, aquela voz suave e tranqüila perguntando
pelo “poeta” Paulo José. Inseguro quanto à
qualidade dos versos que já rabiscava há algum tempo,
não ousava publicá-los. Achava – e de certa forma
ainda acho até hoje – que é perigosíssimo
avançar num território mágico, habitado por talentos
da dimensão de Bandeira, Cabral, Drummond, Pessoa... Camões!
Imagina: Camões! Alguns amigos me incentivavam a publicar, eu
já conseguira até o financiamento, mas cadê a coragem?
Precisava de alguém que “avalizasse” aqueles versos.
Um dia, atrevi-me a procurar o poeta H. Dobal, cuja obra conhecia em
parte, e que estava morando em Brasília. Fui à casa dele
mas havia saído. Deixei os originais debaixo da porta, com o
número do telefone de minha casa, e um bilhete pedindo que me
dissesse com franqueza se aquilo tinha alguma valia.
Demorou mais de uma semana para dar notícias. Já imaginava
que desistira logo na leitura dos primeiros versos. Ao ouvi-lo procurar
pelo “poeta” Paulo José, e elogiar alguns poemas
que lia em voz alta, e querendo marcar encontro para discutir detalhes,
refiz as forças, envaidecido. Mas só fiquei seguro de
minha condição de poeta quando se ofereceu para escrever
o prefácio do meu primeiro livro, “Salto sem Trapézio”.
Aí, sim. Posteriormente iria saber que Manoel Bandeira, ao dar
com os olhos nos originais do primeiro livro dele, prontificou-se a
escrever a apresentação, tal como ele fez comigo.
Fui ao seu encontro, leve que nem passarinho. Recebeu-me amavelmente
na casa enorme, do Lago Sul, inteiramente deserta, aqui e ali invadida
apenas pelo barulho das panelas na cozinha. “Meu filho é
baterista, mas não está em casa, você deu sorte”.
Juntos, lemos meus poemas, alguns com anotações a lápis
que ele havia feito, contendo sugestões de cortes, substituição
de palavras e até mesmo a supressão de alguns poemas por
não se encaixarem no conjunto do livro. Eu havia levado um poema
que havia me ocorrido durante o sono, uns dois dias antes, chamado “A
última canção do peixe”. (É o único
sem ilustração de Albert Pyauhy, pois foi incluído
quando o livro já estava na gráfica). Recebi um elogio
e um conselho: “Se voltar a lhe ocorrer um poema durante o sono
não troque uma palavra, não tente melhorar. Isso é
raríssimo. São privilegiados os que passam por essa experiência”.
(Parece que meu “privilégio” acabou, porque de lá
pra cá nunca mais sonhei com versos...). Acatei todas as sugestões,
menos uma: ele achava que eu devia mudar o verso final de um poema.
Na hora concordei mas, ao colocar o ponto final nos originais, mantive
meu texto, rejeitando a sugestão dele. Mandei entregar-lhe os
originais revisados. Quando os recebi de volta, vieram com o prefácio
que ele havia datilografado em papel fino, de carta. No texto, um delicado
“puxão de orelhas” pela minha insistência em
não acatar sua sugestão. Nunca falamos nesse assunto,
e o prefácio foi publicado na íntegra, com puxão
de orelha e tudo.
A
partir daí, estabeleceu-se gostosa amizade. Voltei a visitá-lo
algumas vezes na “casa deserta”, muitas vezes na companhia
do saudoso jornalista campomaiorense Abdias Silva e de Manoel Paulo
Nunes, que à época trabalhava no MEC em Brasília.
O mal de parkinson já começava a devastá-lo. Por
insistência de Cineas Santos, Dobal deixaria a “casa deserta”
e voltaria a morar em Teresina, onde poderia contar com o apoio da irmã
Verbena e de outros parentes. Sempre que ia ver minha família
em Teresina, aproveitava para visitá-lo nas manhãs de
domingo, as famosas “dobalinas”, na companhia de amigos
comuns como Halan, Cineas, M. Paulo Nunes e Douglas Machado. A cada
visita, a constatação das marcas cada vez mais fundas
deixadas pelo parkinson. Os tratamentos não se revelavam eficazes.
O poeta entendia tudo o que falávamos, às vezes ria, mal
conseguindo balbuciar algumas palavras, balbucio que só Cineas
conseguia traduzir.
Há
uns seis anos, escrevi “O avarento”, poema tão descaradamente
dobalino (“A Serra das Confusões”) que o jeito foi
dizer logo que o texto fora escrito “à moda de H. Dobal”,
para evitar uma acusação de plágio: “Coronel
Chico Belarmino/ sua burra de sela/ suas esporas de prata/ seu rifle
papo amarelo// Coronel Chico Belarmino/ conhecido do Alto Longá/
aos sertões de Beneditinos/ nunca mandou matar ninguém///(por
medida de economia/ ele mesmo fazia este tipo de serviço)”.
Há
uns cinco anos escrevi “Sal do tempo”, inspirado nele e
dedicado a ele. Diz assim: “destroços submersos/ de um
velho galeão/ entre cardumes e moluscos/ ampulhetas, astrolábios/
dobrões de ouro e areia/ ânforas, algas, sargaços/
batidos por ondas vagas/// assim, poeta, tua vida:/ ampla tristeza de
mares/ tantas vezes navegados/ risadas, praias, tesouros/ garrafas cheias
de rum/ dentes, espadas, pistolas/ mulheres e tempestades// toda esta
vida guardada/ eterna, calcificada/ conservada a sal e tempo/ no silêncio
cavo/ destas solidões”.
Um
dia, Cineas mostrou a ele a primeira versão de “Perfume
de resedá”, poema longo que eu vinha elaborando desde 1984.
Novamente fez questão de redigir o prefácio. O livro,
contendo o último prefácio escrito por Dobal, deve sair
até o fim do ano, com projeto gráfico de Amaral.
A
influência de Dobal em meu modo de escrever é tão
forte que, ao bater os olhos num de meus últimos poemas, “Cantiga
da baixa umidade”, Cineas imediatamente identificou ressonâncias
do estilo dobalino. Influência que não apenas reconheço,
mas me orgulho em exibir: “O mato estala nos campos de setembro/
onde a vida perde o viço/ e o mundo é palha.// Tudo é
fumo no horizonte desses campos/ lavados ao calor que avança
em ondas.// O peito dói, e se esfarela/ como o barro calcinado
nas queimadas.// Uma angústia se instala sem aviso./ Todo gesto
é lento./ Até o silêncio agride.// Derrotado à
fornalha dos cerrados,/ o frágil coração nem mais
bombeia./ O sangue vira pó dentro da veia.// Nesta umidade baixa
e relativa,/ qualquer canto de sereia me cativa,/ qualquer ponta de
cigarro me incendeia”.
Uma
vez disse-me que tenho um “sotaque” próprio na minha
poesia. Não tenho certeza disso. Sou dobalino demais.
Um
brinde ao poeta que me descobriu poeta. Um brinde ao poeta que descobri
amigo. Choremos a morte do saudoso Hindemburgo. Mas celebremos com muita
alegria a vitalidade de um dos maiores expoentes da poesia brasileira
contemporânea.
Viva
H. Dobal!
A
história do filho-da-sogra
Quando digo aos meus alunos que redobrem o cuidado com as declarações
dos outros, falo com conhecimento de causa. Nada como a experiência
para a gente aprender a botar as barbas de molho. Agora puxe uma cadeira,
escute este causo e diga se não tenho razão.
Início dos anos 80, saio pra fazer uma matéria
leve, dessas boas pra encerrar telejornal. Era repórter do DF-TV
e comemorava-se, acho que pela primeira vez, o Dia da Sogra. Toda vez
que pintava uma pauta curiosa como essa lembravam-se de meu incorrigível
bom humor. Ainda bem, porque eu me divertia adoidado.
Claro que o tom da matéria foi o de pôr abaixo o
preconceito contra as sogras, essas eternas injustiçadas. A partir
da pauta, colhi boas declarações de amor às sogras.
Ouvi o desabafo de algumas sogras contra o injusto preconceito de que
são vítimas. Produzi imagens de sogras aos beijos com
genros e noras. A matéria estava ficando uma beleza. Mas faltava
o “algo mais” que faz a diferença. Precisava de declarações
de rua, mais espontâneas, pessoas se manifestando abertamente
sobre as sogras. Fui à luta.
“Povo fala” em Brasília só pode ser
feito num ponto que fica entre a Rodoviária e o Conjunto Nacional,
o mais antigo shopping da cidade. Ali no calçadão é
um dos poucos lugares da cidade onde junta gente. Cheguei lá
e armei o circo. Informava que era uma matéria sobre o Dia da
Sogra, e pedia que dissessem o que achavam de suas sogras. Choveram
manifestações de carinho e afeição, que
preconceito idiota, minha sogra é uma santa, acho isso um absurdo,
está mesmo na hora de se acabar com essas gozações
com elas, pessoas maravilhosas... E vai por aí. Até aparecer
uma senhora que encarou a câmera e o microfone da TV Globo e declarou:
“Minha sogra? Aquilo é uma jararaca!”
Fiz mais algumas entrevistas, umas imagens de cobertura, juntamos a
tralha e fomos editar a matéria, que foi ao ar no DF-2, o telejornal
local noturno da Globo-Brasília.
No dia seguinte, ao chegar para trabalhar, encontro o prédio
da Globo cercado pela polícia e uma advertência: mandaram
avisar que use a entrada lateral, porque tem um camarada aí querendo
te pegar por causa da matéria de ontem, a da sogra.
Gelei, mas fui em frente. Os policiais me deixaram conversar
com o tal cidadão, mas me recomendaram que eu ficasse atrás
do balcão da entrada, e não passasse para o outro lado
em hipótese alguma. Não se sabia o que podia acontecer.
Assim foi feito. O sujeito, brabo como diabo, dizia que era da Polícia
Federal, filho da sogra e marido da nora que a havia chamado a mãe
dele de “jararaca”. Ameaçava partir pro pau, até
porque a mãe, ao assistir a matéria na noite anterior,
havia passado mal, fora internada com uma bruta queda de pressão.
Lamentei, mas disse que se alguém tinha culpa não era
eu nem minha editora, mas sim a mulher dele, autora da declaração.
Imediatamente ela apareceu ao lado do marido, soltando os cachorros.
Calma-calma, calma-calma. Perguntei se ela não sabia que aquele
microfone era da Globo. Respondeu que sabia. Perguntei se sabia o que
havia declarado. Confirmou. Perguntei se sabia que o que se fala a um
microfone, principalmente um microfone identificado, é uma espécie
de autorização para ir ao ar. “Ah, não, isso
não! Eu pensei que o senhor estava brincando...”
Não deu pra segurar o riso, fato que elevou ainda mais
a tensão. A cena era kafkaniana. O marido, filho da sogra ofendida,
ficou ainda mais irritado. Ameaçava processar todo mundo, inclusive
esse tal de Roberto Marinho, dizia que ia mandar prender, cozinhar nós
todos em azeite quente, baixar o cacete, o diabo.
Resumo da ópera: eu e a editora do DF-TV, a Fátima
Gomes, pedimos sinceras desculpas. Sugerimos que, ao serem abordados
por um repórter, medissem melhor as palavras. A direção
da TV resolveu enviar à sogra um buquê de flores com um
cartão onde eu escrevi um pedido de desculpas pela besteira...
da nora dela. E demos o caso por encerrado.
Por falar em encerrar, o caso encerra uma lição.
Aprende, Paulo José, aprende para nunca mais esquecer: para não
levar um tiro por causa da besteira de uma nora desajuizada, deve-se
avaliar muito bem o impacto que uma declaração –
seja ela de quem for - pode causar a outras pessoas. Juridicamente,
uma pessoa adulta é a responsável pelos seus atos, e responde
por eles. Mas até conseguir convencer um filho-da-sogra enfurecido
que você não tem culpa pelas declarações
da mulher dele, o melhor é entender de uma vez que sogra também
é mãe, e merece respeito. Que telejornalismo não
é a casa da sogra, onde qualquer declaração pode
ser editada e colocada no ar. E que tem sempre algum filho-da-sogra
solto por aí, doido pra te dar um tiro na cara.